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A revitalização da herdade Horta do Zé

Está um fim de tarde fresco de Outono. As faces dos ouvintes são incessantemente aclaradas pela luz da fogueira. Contam e ouvem histórias sobre o rio Sado, sobre esta quinta e o seu jardim. Como seria este lugar há 50 anos, quando ainda reinavam estruturas feudais, e os trabalhadores rurais habitavam esta quinta com as suas famílias? E qual poderia ser o seu futuro? Os ramos largos de uma nogueira estendem-se sobre todos e dão um sentimento de aconchego. É como se os elfos dançassem sobre as cabeças dos ouvintes. Mas esperem: quem é que faz uma fogueira por baixo de uma árvore, mesmo quando esta está bem protegida com pedras, como é o caso desta?“Não se preocupem, o fogo não irá prejudicar esta árvore”, diz José Arantes, o anfitrião. Ele move-se descontraidamente num baloiço de cortiça, pendurado num ramo da nogueira. “Eu conheço esta árvore desde a minha infância, porque a minha família a plantou por ocasião do meu nascimento. Eu sei o que lhe faz bem ou não.”


José Arantes é um homem admirável. Consegue quebrar tradições e, ao mesmo tempo, preservá-las. Ao contrário dos outros latifundiários seus antecedentes, vive na sua herdade e põe as mãos na terra. A sua família possui 3.000 hectares de terra agrícola, mas ele inventa e constrói jardins para pessoas que não têm espaço – jardins verticais para o interior e o exterior. Os seus pinhais e sobreirais são lucrativos e têm certificação biológica, mas ele acrescenta-lhes muitas outras espécies de árvores, transformando-os assim numa floresta mista, com crescente biodiversidade. Arantes dedica a maior parte do seu tempo e amor à sua horta, com um hectare de tamanho: como os trabalhadores rurais de antigamente, produz os legumes que ele e a sua família necessitam para viver. Mas antes de mais, a Horta do Zé serve de escola para produtores auto-suficientes. José Arantes apoia as pessoas que querem ser auto-suficientes. É para isso que está a restaurar, pouco a pouco, toda a Herdade de Porches.


Um sentimento de comunidade

Encontro-me a sul de Alcácer do Sal, no Alentejo. Aqui, o rio Sado serpenteia calmamente pelos campos de arroz verde-claros. As colinas à minha volta estão cobertas de extensos pinhais e por detrás vê-se o montado. Até ao 25 de Abril, o arroz e a cortiça eram a fonte da riqueza de muitas das grandes famílias tradicionais pertencentes à alta sociedade de Lisboa e Cascais. Estes eram produzidos em grandes propriedades como a Herdade de Porches. Aqui viviam 19 famílias, quase em condições de escravatura, e produziam a mais-valia para a família de latifundiários. “Os trabalhadores eram miseravelmente pobres”, conta-nos José, “mas pelo menos ninguém tinha que passar fome”.

O que os trabalhadores rurais precisavam para a vida do dia a dia – legumes, pão, carne, peixe, ovos e queijo, produtos artesanais – produziam na herdade, que também tinha uma padaria, um ferreiro, uma carpintaria e ainda uma fábrica de arroz. Quase tudo podia ser produzido na herdade. De fora, só vinham os metais e, por vezes, a madeira. Não havia desperdícios, tudo era reciclado e reutilizado. José ainda se lembra bem. Nos anos 60, quando vinha cá com a sua família ao fim de semana, ainda não havia estrada. O único caminho de acesso era com o barco pelo Sado ou a pé pelos campos de arroz. Tudo era transportado com cavalos. “Os trabalhadores e as suas famílias iam uma vez por ano a Alcácer e compravam no mercado as poucas coisas, que necessitavam ou desejavam para as suas vidas.

Traziam os sapatos atados sobre os ombros, para os poupar e se apresentarem em Alcácer bem vestidos, apesar do caminho. Apesar da pobreza, lembro-me da sua alegria. Cantavam muito e sentiam-se próximos uns dos outros, em comunidade. É isso que falta à maior parte das pessoas hoje em dia, sem o lado das terríveis condições feudais, claro”, comenta José Arantes para finalizar.

A Herdade de Porches foi nacionalizada na reforma agrária de 1974 e novamente restituída à família após alguns anos. Depois isso, as terras foram geridas por um administrador, mas os produtos já não eram transformados na herdade. Já não eram necessárias as máquinas e tantas pessoas e as casas foram-se degradando.

A autossuficiência como necessidade da nossa sociedade

Quando era jovem, José não se preocupava com isto tudo. Foi para Nova Iorque e fez uma carreira como dançarino. Quando ele e a mulher voltaram para Portugal, tiveram a ideia de se estabelecer na propriedade rural da sua família. “Queríamos montar uma espécie de turismo ecológico, mas não tínhamos nenhuma noção do assunto”. Isso significou formação. Primeiro, José frequentou  um curso de agricultura biológica em Beja e teve uma espécie de visão: “O que aprendi ali naquelas duas semanas modificou a minha vida. Nunca mais deixei de continuar a minha formação nessa área. Reconheci a absoluta necessidade de uma transformação profunda na nossa sociedade. Todas as pessoas têm que ter o direito, e a possibilidade, de produzir os seus próprios alimentos.”

José ouviu esta frase de Bill Mollison, o fundador da permacultura: “Se olhas pela janela e não vês os teus alimentos a crescer, então tens um problema.” Por outras palavras: um sistema com autossuficiência a nível regional é mais sustentável, estável e justo e mais saudável para as pessoas e a natureza do que qualquer produção intensiva e industrial.
Não é a produção industrial que nos traz alimento, pelo contrário, muitos jardins com diversificação de culturas é que nos trazem o alimento que é mesmo bom para nós. E os cuidados que o homem dedica à sua terra para cultivar os seus alimentos protegem a natureza e a sua diversidade com a maior eficácia. Era nisto que ele, a partir de agora, se queria empenhar e começou, pouco a pouco, a tornar as ruínas em casas novamente habitáveis. Em 2006 mudaram-se para lá. Depois do falecimento da sua mulher viveu primeiro sozinho na herdade, mais tarde juntamente com o seu sócio, dois colaboradores e ocasionalmente com “Wwoofers”. *

Jardins verticais

Entretanto, Porches transformou-se. Nem todas as casas estão novamente habitáveis, mas encontramos arte, beleza e detalhes com gosto por todos os lados. Principalmente plantas, ervas aromáticas e flores crescem – no interior e no exterior; paredes inteiras da parte restaurada da herdade parecem invadidas por plantas.
“Adoro quando tudo é verde”, conta-nos José, “também dentro de casa”, diz. Os amigos que ele conseguiu contagiar com a sua paixão pelos jardins e pela autossuficiência, mas que não têm o terreno para a concretizar, inspiraram-no a desenvolver jardins verticais. Essa ideia tornou-se a sua paixão: dentro e à frente de casa, na varanda, no jardim de inverno e nas partes da herdade que não voltarão a ser habitadas estão os mais diversos recipientes de pedra, madeira, barro ou gesso armado, onde crescem ervas aromáticas, legumes e flores uns por cima dos outros. A rega automática e a iluminação – quando necessária – está discretamente integrada.

José: “Os clientes da minha empresa de consultadoria em jardinagem consultaram-me muitas vezes e mostravam-me um pote com ervas aromáticas que tinham comprado no supermercado. Tentavam manter a planta viva, mas ela morria sempre. Foi assim que comecei a mostrar às pessoas como poderiam cuidar das plantas, independentemente do lugar ou da luz que têm em casa. Eu próprio ensino, mas estou sempre a aprender ao mesmo tempo, por isso isto aqui está cheio de experiências. A primeira regra é: não há planta que goste de crescer sozinha. Exatamente como nós, as pessoas. Pensando consequentemente, este é o início da diversidade biológica, e essa também é necessária nos espaços mais reduzidos.

Aromas de manjericão, cebolinho, tomilho e cidreira pairam no ar do jardim de inverno. Uma das paredes está cheia de folhas e de ervas aromáticas, é composta por um jardim vertical de barro. À primeira vista, parecem caixas empilhadas, mas é um único recipiente, em que temos a terra, e – impercetível – um sistema de rega. “Tudo está interligado, para as raízes se poderem desenvolver. Também é importante plantar as ervas que necessitam de mais luz em cima e as plantas com folhas maiores em baixo, para que todas tenham luz suficiente.” Não é só no jardim de inverno, rico em luz, que verdejam as plantas. No teto da sala de estar, um local mais escuro, ervas aromáticas em metades de tronco de sobreiro proporcionam uma atmosfera especial. O que julgamos ser uma janela no telhado é na realidade um sistema de luz para plantas. Nos seus jardins interiores José automatizou a rega e a luz para tudo funcionar por si só depois da plantação.

O cerne da revitalização

Mas foi o jardim que foi, desde o início, o cerne da revitalização de Porches. “Quando eu comecei a plantá-lo, as pessoas abanavam a cabeça”, lembra. “Claro que me achavam doido e exótico: o dançarino de Nova Iorque que direciona tantos esforços para um só hectare quando tenho muitas centenas à minha disposição.” Atrás de um muro em pedra, imediatamente junto à casa principal, está a manta de retalhos de pequenos canteiros com uma mistura colorida de legumes, ervas aromáticas, arbustos, árvores – e muitas flores. Um pequeno ribeiro garante a rega, alimentado diretamente de uma fonte. “Em cada época do ano, o jardim tem um aspeto diferente e oferece outros frutos. Ele alimenta-me, à minha família e aos hóspedes. Os frutos são transformados em compotas e vendidos.

Também gostaria muito de fornecer um ou dois restaurantes – desde que estes estivessem dispostos a restringir-se aos produtos da época. “É o que temos de voltar a aprender para termos uma boa alimentação: tomate e pimentos em janeiro, isso simplesmente não é natural. Em contrapartida há muitas outras coisas.” Entretanto, José e o seu sócio fazem consultadoria para proprietários em todo o país, e plantam jardins em permacultura. Sempre que os clientes desejam informar-se sobre as possibilidades, ele faz-lhes uma visita guiada pela herdade e pelo jardim. As inspirações são muitas, por exemplo, o local iluminado para lavar legumes – uma maravilha em madeira e cerâmica. “Lavar os legumes diretamente na horta tem muitas vantagens: a cozinha não está cheia de terra e de sujidade; e a terra e as partes que não se aproveitam dos legumes ficam logo no jardim, onde não são detritos, mas sim material para a compostagem.”, diz José.

O seu jardim foi concebido para estar em harmonia também com as criaturas que normalmente consideramos pragas. “Claro que tenho que fazer algo, quando há caracóis ou outros animais a mais que possam provocar danos no jardim. Mas eu não os considero inimigos, eu não os caço, tento tratá-los da forma mais simpática possível e proporcionar-lhes outro lugar na natureza, para onde se possam desviar. Eles já cá estão há mais tempo do que eu. Agora estão sem pátria e não necessitam do nosso ódio mas sim, da nossa simpatia. Estou convicto que só iremos viver um futuro positivo se aprendermos a respeitar as leis da natureza. E há uma lei de que estou completamente convencido: o que fizermos à natureza voltará para nós. Portanto, vale a pena ser simpático com as suas criaturas.”

O serão já se tornou longo e a fogueira está quase apagada. Mas ninguém quer ir dormir sem que José conte o seu grande sonho: a construção de uma comunidade. “Seria maravilhoso voltar a revitalizar esta terra com pessoas, principalmente com jovens famílias com crianças. Eu já escolhi um bocado de terra para isso, um belo terreno perto do rio, onde já estamos a plantar árvores autóctones. Tenho muitos amigos em Lisboa que gostariam de se mudar para o campo, mas o salto para uma vida diferente, para fora da que têm atualmente, é grande demais. Têm de começar a construir uma existência no campo. Por isso, proponho como solução transitória uma comunidade de agricultores de fim de semana. Todas as famílias que queiram participar comprometem-se a participar dois fins de semana por mês. Juntos iremos, uma após outra, construir todas as casas: de barro, de madeira, de palha – e plantar os jardins. As pessoas poderão assim, a pouco e pouco, construir as bases para a sua vida e profissão, até que o salto já não seja tão grande – e possam passar para cá definitivamente. É aí que Porches ganhará nova vida.”

**(Willing Workers on Organic Farms – Voluntários e viajantes que, com algumas horas de trabalho por dia em quintas biológicas, garantem o seu sustento e alojamento – em wwoofer na internet encontra-se esta rede global)

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