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Encontrar-se a si próprio

Há na Europa central e do norte, em França e na Bélgica, nos Países Baixos, na Alemanha e até na Dinamarca, na Grã-Bretanha e na Suécia, a antiquíssima tradição dos aprendizes itinerantes, para quem aprende um ofício. Carpinteiros e marceneiros, canalizadores, sopradores de vidro, alfaiates, funileiros, sapateiros e muitas outras profissões dão aos seus aprendizes a oportunidade de completar os seus conhecimentos pelo mundo fora. Essa tradição remete aos tempos do final da Idade Média, no século XV, e chama-se “Walz”. É uma tradição que sobreviveu a todas as revoluções industriais e alterações sociais. A itinerância dos aprendizes dura pelo menos três anos e um dia. Durante esse período o aprendiz itinerante não pode voltar a casa e tem que se manter a uma distância de mais de 50 km da sua cidade natal. O marceneiro alemão Hennig Vogt, hoje com 37 anos de idade, iniciou a sua “Walz” há dez anos, e foi logo no primeiro ano da sua caminhada que passou por Portugal.

ECO123: Apresente-se aos nossos leitores em breves palavras.
Trabalho como educador na psiquiatria infantojuvenil de Lübeck. Aprendi duas profissões, primeiro marceneiro e depois educador infantil. Enquanto estava a fazer a minha segunda formação, já sabia que teria que começar a caminhar. No dia 2 de janeiro de 2006 iniciei a minha caminhada.

Qual é a sua especialidade?
A construção de móveis de madeira recorrendo a juntas tradicionais.

Onde começou a sua caminhada e como é que esta correu?
Iniciou-se em Bad Oldesloe, no norte da Alemanha. Era esse também o local de que deveria manter-me afastado 50 km. Como sabia que tinha muito tempo, caminhei nove meses pela Alemanha, para depois, no outono, seguir para a Suíça, atravessar a França e rumar a Espanha. Era o fim do mês de novembro e decidi ficar três meses em Barcelona, para trabalhar numa empresa que estava a fazer o interior de uma agência de viagens. Depois passei pela Andaluzia, Granada e Cádis e acabei por chegar a Portugal. Trabalhei dois meses no Algarve, em Monchique e em Aljezur. Para voltar à Alemanha apanhei um autocarro, porque tinha lá trabalhos agendados.

Fez grande parte do percurso a pé. Onde dormia?
Atravessei todo o Algarve a pé, de Tavira, passando por Faro, até Aljezur. Dormia no meu saco cama em edifícios em obras abandonadas ou no meio da natureza. Tentei sempre ficar abrigado, porque por vezes chovia bastante. Em Monchique e em Aljezur tive um quarto.

Houve situações problemáticas?
Encontrar um bom local para passar a noite é sempre difícil. Foi assim em Faro e nas outras grandes cidades. De noite queremos estar sossegados, e para isso é preciso um local seguro. Há sempre o perigo de ser assaltado. Em Faro não encontrei quem me albergasse.

Henning Vogt
Henning Vogt

E como decorreu o resto da viagem?
Voltei para a Alemanha, e, no verão seguinte, em 2007, rumei à Escandinávia. Dirigi-me à Noruega, passando pela Suécia, e depois regressei pela Dinamarca. Encontrei trabalho em Oslo. Tinha um caderno de caminhada com as cartas de recomendação e os comprovativos das estadias. Quando chegamos a uma cidade, apresentamo-nos ao presidente da câmara, e esse confirma que lá estivemos com o seu carimbo. Não perder o caderno de caminhada é uma questão de honra. É coisa que não deve acontecer de forma alguma. Contaram-me o caso de um aprendiz itinerante que caiu dentro de água e teve que secar as folhas uma a uma. No inverno de 2007/2008 estava sozinho, a trabalhar na Suíça, e fiquei com uma depressão. Já não tinha objetivos na minha viagem e ansiava por voltar a casa. Mas não o podia fazer. Ainda tinha um ano pela frente antes do regresso. Apesar de ter trabalho, um bom alojamento, e poder escolher a minha comida, estava a passar por um momento difícil.

Como é que conseguiu sair dessa situação?
Chegou a primavera e acabei por encontrar alguém que me podia acompanhar na viagem. Parti com ele por Itália até à Grécia. Antes disso tinha viajado sempre sozinho.

O fato típico dos aprendizes itinerantes chama-se ”Kluft”. Como foi para si andar assim vestido e que bagagem levava consigo?
Depois de um ano mandei fazer um fato “Kluft” novo, porque as minhas calças se estragaram. Gastei dois fatos durante as minhas caminhadas. Tinha um saco cama, um tapete de campismo, um saco bivaque, uma calça de trabalho, três cuecas, três t-shirts e três pares de meias. Não se pode levar dinheiro, mas durante a viagem vai-se ganhando algum. Também tinha panos para embrulhar ferramentas.

Quantos quilómetros é que fez nesses três anos, e o que diria, para concluir?
Deve ser um número impressionante, mas eu nunca contabilizei isso. Nestas viagens o objetivo é, antes de mais, a paz e o entendimento entre os povos e possibilitar-nos a aprender algo de novo na nossa profissão. Ajudei a fazer telhados, e foram muitas as experiências que vivi. Posso dizer que nunca mais quero viajar vestindo o fato tradicional. Ele simboliza falta de liberdade. E pesa imenso. O tecido é de um algodão muito grosso, que fica ensopado quando chove. Com o tempo fica a cheirar a cão molhado. Não é simples de lavar, é difícil de secar. Dura muito, mas não é prático.
Também gastei dois pares de sapatos. O mais importante para mim é que todas as pessoas tenham a possibilidade de viajar. Que tenham a coragem de deixar o seu país para conhecer algo de novo. É algo que enriquece muito a vida. O encontrar-se a si próprio acontece automaticamente quando se caminha mais do que dois ou três dias seguidos.

Há algum código de conduta?
Não se deve criar problemas por onde se passa, e deve-se ter um comportamento digno. Em Alemão usamos a palavra “Schlitzohr”, orelha rasgada, para o definir. Tal definição vem do facto de, comportamentos impróprios, como furtos e coisas parecidas, terem sido punidos retirando o brinco da orelha do aprendiz, rasgando a sua orelha, para que todos pudessem ver de que tipo de pessoa se tratava. Todos os aprendizes itinerantes tinham que ter um brinco de ouro.

Quando se recorda desses tempos, onde gostou mais de estar?
Isso é uma pergunta difícil. Gostei de estar na Suécia e em Portugal, e nesses países pude satisfazer as minhas expetativas quanto à caminhada.

Quando se caminha tanto pela Europa, fica-se a conhecer bem a gastronomia dos países. Onde apreciou mais a comida?
Em Portugal.

Obrigado.

About the author

Uwe Heitkamp, 53 anos, jornalista e realizador, vive 25 anos em Monchique, Portugal. Adore caminhadas na montanha e natação nas ribeiras e barragens. Escreve e conte histórias sobre os humanos em relação com a ecologia e a economia. Pense que ambas devem ser entendido em conjunto. O seu actual filme “Herdeiros da Revolução” conta durante 60 minutos a história de uma longa caminhada, que atravessa Portugal. Dez protagonistas desenham um relatório da sua vida na serra e no interior do país. O filme mostra profundas impressões entre a beleza da natureza e a vida humana. Qual será o caminho para o futuro de Portugal? (Assine já o ECO123 e receberá o filme na Mediateca)

 

 

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