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O eremita

Marcelino Vicente | O Eremita de Barbelote

Depois do inverno, na próxima primavera, chegará um momento digno de comemoração. No dia 30 de março Marcelino Zé Vicente fará 80 anos. Viveu durante 67 anos no Barbelote, uma pequena aldeia histórica em ruínas perto da Fóia, o cume da serra de Monchique. Há dez anos que vive só numa pequena casinha de pedra local. Quando, em 1949, os seus pais adquiram o terreno e subiram com as crianças, levaram também duas vacas, cinco porcos, uma dúzia de galinhas e coelhos. Viviam da agricultura, para consumo próprio e para comercializar. Era a época da Ditadura. Não houve escolaridade obrigatória. O único par de sapatos só saía à rua aos domingos e feriados. Marcelino é hoje o último habitante do Barbelote, sem eletricidade e sem televisão. Nunca teve carro. Desloca-se de bicicleta até Monchique. Descer é fácil, a gravidade ajuda, mas a subida exige vigorosas pedaladas. ECO123 visitou-o ao longo de uma caminhada perto das Cascatas do Barbelote.

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Quantas pessoas existiam na sua família?

Sete, mas o meu pai morreu no ano em que chegamos aqui, logo no mês seguinte. A minha mãe aqui esteve ainda 19 anos. Éramos quatro irmãos, hoje somos três e uma irmã. Esta e um dos meus irmãos vivem hoje num lar. Sou o último aqui.

Gosta de viver cá em cima com esta maravilhosa vista para o mar?

Não gosto de viver aqui, não.

Não tem outra possibilidade…

Pois, por enquanto não tenho. Mas com o tempo vou ter de sair daqui.

Olhando para trás na sua vida, o que é que vê?

Andei a trabalhar em muitos locais e em muitas áreas. Trabalhei na madeira, na limpeza da mata… mas a maior parte do tempo trabalhei na agricultura. Foram muitos anos, sempre por conta própria: cavar, semear, colher…

A maior parte do tempo vendi o que colhíamos e também consumíamos. Semeava batata, batata-doce, feijão, milho, couve; no verão também tomates, pepinos, melancias e meloas. Tínhamos duas vaquinhas, porcos, galinhas, coelhos e um burro. Fazia muita falta. Até para ir à vila, para carregar as compras.

O que é que fazia no inverno?

Medronho. A apanha do medronho começa no dia 10 de outubro e vai até dezembro. Faz-se a aguardente em fevereiro, altura da limpeza do mato.

E hoje, continua trabalhar e a receber a reforma?

Hoje já não posso trabalhar muito. Recebo reforma, mas é pouco. O que não semeio preciso de comprar. Agora ainda tenho tomates na horta para colher. Aqui não me falta nada. Tenho água da nascente. Todos os dias cozinho. Hoje fiz batatas com salada de tomate e um bocadinho de bacalhau assado. Mas gostava de viver num outro sítio.

Se pudesse mudar de casa, onde gostava de viver?

Ainda não sei. Estas casas eram minhas (aponta o casario em volta). Vendi todas. Talvez alugar ou comprar uma casa em Monchique…

Como começa o seu dia?

Acordo de manhã, levanto-me, faço as minhas coisas em casa… lavo a loiça. Bebo às vezes uma pinguinha de vinho com uma fatia de toucinho no pão. Lavo a roupa e trabalho na hortinha, a tratar a couve para o inverno. Depois ando na cozinha. Gosto de fazer feijão com arroz ou com batata, salada de tomate com pão. Ligo todos os dias o rádio para ouvir as nóticias na Antena1 e a música na Rádio Amália. Gosto de fado. Não tenho televisão. Uma vez por semana vou à vila fazer compras, pão e fruta na mercearia. Visito também o hospital para levantar os meus comprimidos e ver o meu irmão no lar.

Compra também carne, leite e ovos?

Leite não, ovos também não. Não gosto de manteiga de vaca, nem de queijo. Presunto, chouriço e bacalhau gosto. Gosto de comer muita fruta. Maçã, melão, uvas. E compro uma vez por mês um garrafão de vinho tinto.

Tem medo dos incêndios?

Tenho, mas hoje não vamos falar sobre isso.

Alguma vez na sua vida viajou de avião?

Nunca. Uma vez saí de Portugal para Espanha, com o meu primo. Estive em Ayamonte. Foi um dia sem fazer nada, só a comer e beber, e andar de autocarro. Outra vez estive em Carmona, uma cidade com mais de 2000 anos de história.

trabalhador-marcelino-vicente4Sabe ler e escrever?

Sim. Aprendi era já quase adulto. Com oito anos saí da escola para tratar do gado com os meus irmãos. A minha mãe ensinou-me em casa. Com 18 anos regressei à escola, mas por pouco tempo. Nessa altura aprendi a escrever e a fazer contas de multiplicar e dividir com três números…

Alguma vez foi casado?

Não. Não quero. Nunca me faltou mulher…

É feliz com a sua vida?

Sempre fui saudável. Hoje preciso de tomar todos os dias comprimidos contra o reumatismo. Como posso ser feliz com dores? Enfraqueci muito nos últimos anos.

O senhor é um importante testemunho da sua época. Que opiniões tem sobre Monchique nas últimas décadas?

Falta muita gente no interior. Temos cada vez menos jovens em Monchique. E as pessoas da minha idade morrem. Também não há emprego para as jovens e as mulheres já não querem ter filhos. Mas as pessoas não sabem o que é bom. Gostam de viver em Portimão, mas as águas e o ar aqui são muito melhores. Hoje todos vivem para o dinheiro e muitos não conseguem pagar o que compram. E não é só aqui em Monchique. Muitas reparigas vivem da reforma das suas mães. E muitos portugueses vivem fora, vão trabalhar para a Suíça, França, Alemanha.

Antigamente a serra tinha outro clima?

Os invernos eram mais chuvosos, sim senhor, mais frios, e os verões hoje são cada vez mais perigosos. Antigamente não havia incêndios. Os terrenos estavam mais limpos, as matas tinham menos eucaliptos. O tempo era mais estável. No ano passado o verão era quente e este ano ainda é mais quente. Hoje temos trovoadas e chuvadas todo o ano. A vida é a cada ano mais perigosa.

Obrigado pela conversa.

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