Floresta autóctone
Recentemente, uma página web ligada a acontecimentos atuais despertou a minha curiosidade jornalística. Tenho que acrescentar aqui que já só recomendo páginas web cujos autores se identificam com nome e endereço. Por princípio já não vejo idiotices anónimas. E faço o mesmo no caso dos telefonemas. Não dou atenção e não perco tempo com quem me telefona de um número anónimo. Por os impulsionadores desta página web agirem com transparência, telefonei-lhes e perguntei se estariam dispostos a falar comigo sobre qual a motivação que os levou a publicar essa página. Combinámos um almoço no Porto. Portanto comprei um bilhete para o Alfa Pendular das 7h30 de Tunes para Vila Nova de Gaia.
O almoço e a entrevista tiveram lugar no jardim botânico e duraram 120 minutos. À tarde voltei para o Algarve, onde cheguei por volta das 20 horas. A minha viagem de comboio para esta entrevista emitiu 15 Kg de CO2, segundo o calculador da CP, e demorou aproximadamente 11 horas (ida e volta).
O nome da página web é:
www.florestautoctone.webnode.pt
Chamo-me Jorge Moreira. Sou ambientalista e ecologista, formado em Ciências do Ambiente. Tenho 52 anos. Possuo uma empresa na qual faço reparações de equipamentos elétricos e eletrónicos. Recupero esses equipamentos. Reutilizo muito material e isso, ambientalmente, é uma mais-valia, mas também o meu ganha-pão. A maior parte das coisas que faço a nível ambiental são pro bono.
Quantos quilómetros conduz por ano?
Faço uma média de quinhentos quilómetros por semana, porque vou buscar muito material para reparar nas vilas do interior.
Compensa esse gasto de alguma forma?
Compensar?
Todos nós temos uma pegada.
Sim.
Um português gasta, em média,sete toneladas/ano.
Durante a semana, de segunda a quinta, normalmente trabalho em casa, não preciso de me deslocar. Sexta-feira é o dia em que faço mais quilómetros. Portanto, compenso ao tentar não trabalhar fora de casa, não gastar, digamos, qualquer tipo de pegada carbónica durante esses dias. E aquela que tem mesmo de ser feita faço-a à sexta-feira.
Estou a perguntar porque conheço a minha pegada, são três toneladas por ano.
O peso da minha pegada não conheço, toneladas, quilogramas… Não, nunca fiz esse cálculo.
500 km/semana são cinco toneladas/ano, se a viatura for …
… a gasóleo. Mas tem uns filtros, e aquelas coisas todas. Na altura que a comprei, era o mais ecológica possível. Depois soube-se que não era bem assim, não é? Mas isso são contas que nos ultrapassam.
E a seguir temos…?
…Miguel Dantas da Gama. Sou engenheiro eletrotécnico. Fui, agora deixei de o ser.
Um engenheiro, como José Socrates?
Não, não, não. Tirei o curso na Universidade do Porto, mas agora não exerço. Em 2009 entrei no movimento associativo conservacionista. Estive na fundação da Quercus, e depois, criámos o FAPAS – Fundo para a Proteção dos Animais Selvagens. Até aí exerci a profissão e, a partir de 2009, transformei o hobby na minha atividade. Portanto dedico-me à edição de livros. Tenho muita atividade no Parque Nacional do Gerês.
Consegue sobreviver?
Desde que deixei de trabalhar a minha vida mudou um bocado. Ando menos de carro; no Porto, apenas a pé. Tenho uma motoreta, com a qual ando nos arredores da cidade, quando tenho de sair; e uma bicicleta, que uso bastante. Quando vou para a serra levo o jipe.
É feliz?
Sou feliz na vida que levo. No mundo em que estamos acho-me um privilegiado. Não me sinto muito feliz neste país porque aquilo que vejo não é muito agradável. Há problemas que subsistem, que agravam, e questões como esta que nos traz aqui que me deixam preocupado. Temos vindo a dizer há muito tempo que iria acontecer; normalmente não somos ouvidos. As coisas não tendem a mudar no bom sentido. Há iniciativas interessantes, de particulares, mas não vejo grandes alterações nas questões de fundo que tenham a ver com uma mobilização do Estado. Hoje confunde-se muito o usufruto com a conservação. O facto de as pessoas gostarem de estar na natureza não quer dizer que estejam a protegê-la. Não se faz muito pela natureza.
Quantos anos têm?
60.
Jovens…
Chamo-me Jerónimo Pinto Gama. Sou um ecologista a solo. Fiz parte, há uns anos atrás, de uma associação ambiental chamada GAIA, que era um pouco como uma associação ambiental, linha dura, mais radical. Mas ao longo do tempo fui descobrindo que as maiores questões ambientais com que nos deparamos necessitam de mais profundidade e mais dedicação. Precisam de algum empenho, seriedade. Assim, segui uma linha de mais confrontação que permite olhar as questões de forma mais inteligente e ter resultados a longo prazo.
Tem companheira?
Na minha vida? Não. O que é que isso tem a ver… (risos)?
Quantos anos tem?
Faço hoje trinta e oito anos. Como prenda gostaria de ver uma floresta rejuvenescida, regenerada, acho que era a melhor prenda de aniversário que me poderiam dar.
Feliz?
Algo feliz, algo incompleto.
Incompleto?
Sim.
Mas isso é o tema desta edição: o que vamos fazer para o que falta. Ainda temos o José Marques, setenta e quatro anos, certo?
Sim, a caminho dos setenta e cinco, em maio. Nasci no Porto e sou de uma geração anterior ao 25 de Abril. Os anos sessenta aqui no Porto foram bastante tumultuosos e, por outro lado, interessantes também.
Foi em França, onde estive desde 1970, uma vez que não fiz a Guerra de África, que tomei conhecimento da existência da ecologia. Nessa altura, em Portugal, praticamente não se falava no assunto.
Participei em várias iniciativas ecológicas ao longo de décadas. Em 2000 um grupo de pessoas do Porto fundaram a Associação Campo Aberto. Tenho estado ligado a ela desde essa altura. E embora em todo o percurso tivesse sempre sido dada atenção ao território, à ruralidade… a questão dos incêndios, da floresta, aparecia sempre. O meu foco esteve sempre mais voltado para aquilo a que chamamos renascimento rural, um movimento de criação de uma nova vitalidade no interior rural do país.
Mas ao contrário das expectativas, o que aconteceu foi exatamente o contrário. Década após década registaram-se o total abandono e a desertificação. E isso começou a refletir-se em incêndios cada vez mais violentos, e mais frequentes.
Pouco a pouco, esse assunto passou a ter maior importância para mim, mas só em 2016 surgiu a urgência de a tornar mais central.
Que sentimentos o dominam?
O sentimento dominante é de que tenho pouco tempo pela frente e é preciso aproveitá-lo o melhor possível. Quero aproveitar este tempo para fazer algo que possa ser útil a alguém, mesmo que seja a uma ou a duas pessoas. Fazer alguma coisa para corrigir muitas barbaridades que se fizeram nesta época.
É professor?
Fui professor, mas tive outras profissões. As disciplinas que lecionei também foram várias. Fiz o ramo todo de Letras: Línguas, Português, Francês, História. Fui tradutor também, assessor editorial… redator de uma enciclopédia, inclusive, no Brasil, nos anos setenta.
É mais atingido pelo medo ou pela coragem?
Medo e angústia são sentimentos que já estão tão mastigados, triturados e interiorizados. Não sei se os tenho ou não. É qualquer coisa que foi sublimado a um grau… Sublimado, e de certo modo, dominado por um grau que, agora, de repente, não consigo saber se tenho ou não tenho. Mas é claro que, perante uma situação concreta, obviamente que tenho medo.
Jorge Moreira (1967), Miguel Dantas da Gama (1958), Jerónimo Pinto Gama (1981) e José Carlos Marques (1945)
Por que se juntaram os quatro neste projeto: www.florestautoctone.webnode.pt? Como chegaram a esta ideia?
Jorge Moreira: Surgiu um movimento o ano passado nas redes sociais, através de uma fotografia que publiquei. Consistia numa homenagem às árvores que tinham desaparecido no incêndio do ano passado. Juntaram-se ali meia dúzia de pessoas com o mesmo sentimento e desejo de mudar o paradigma dos incêndios.
O José Carlos acabou por perceber que esse movimento existia e convocou uma reunião como coordenador para debater, tanto a questão dos incêndios, como a do coberto vegetal. Num encontro aposteriori surgiu uma ideia de fazermos algo, que culminou com um apelo pela floresta autóctone.
Eu vejo a floresta de uma outra forma. A floresta tem os seus direitos, os direitos da Natureza. A floresta não deve ser utilizada de uma forma autoritária, antropoceno, tudo por um único e exclusivo interesse humano. Há uma área que me é muito querida, que é a ética ambiental, a relação que todos temos com a Natureza e os outros seres.
E este repensar a Natureza, e a nossa relação com a mesma, vai ao fundo da questão: por que motivo a floresta está como está? Por que motivo destruímos quase por completo as grandes manchas de floresta nativa, floresta autóctone, em detrimento de monoculturas de eucalipto, pinheiro bravo? Porquê? Está aí o problema! A nossa indiferença, a nossa errada perspectiva de olhar para a Natureza como algo que não está vivo. A natureza está viva! E a floresta faz parte da Natureza. É a nossa base. É onde habita a maior parte da fauna, que também é muito estimada, e que também tem o mesmo direito de viver de uma forma saudável, como nós.
O presidente da Portucel e Navigator talvez tenha uma outra ideia, não considera?
Eu sei que têm. É uma ideia de olhar para a floresta apenas como uma forma de lucro.
E de criar postos de trabalho.
Sim, mas no fundo não cria. Porque se nós colocarmos uma monocultura de eucalipto no local, por si só ela cresce, e podemos rezar para que ela não arda durante uma década, e no fim vamos lá buscar os lucros.
Uma floresta autóctone não é bem assim: normalmente é preciso estar no local para cuidar dela, pelo menos nos primeiros estágios. Ela depois torna-se autossuficiente, mas nos primeiros estágios é preciso cuidar. Depois podem proporcionar uma panóplia de serviços, para além de gerir o ecossistema, a base do nosso bem-estar, da nossa vida.
Queremos menos perdas.
Obviamente. E os fogos seriam menos severos. A severidade e a vingança dos fogos seria completamente diferente entre uma floresta autóctone adulta e uma monocultura de eucalipto ou de pinheiro bravo. Não faltam estudos a comprovar exatamente isso: a severidade é muito maior neste tipo de expansão de inflamáveis, como o eucalipto e o pinheiro bravo, do que, por exemplo, nos carvalhos, nos sobreiros, nas bétulas…
Para além disso há a beleza. E isso, para mim, não é apenas um aspeto turístico, embora possamos aproveitar essa dimensão para divulgar Portugal. Mas é preciso olhar para a Natureza e ver algo que nos liga profundamente.
E nós precisamos de sombra.
José Carlos Marques: Exatamente. No início desta iniciativa, a Aliança pela Floresta Autóctone esteve ligada ao verão de 2016, com uma dimensão e número de mortes bastante superior à registada nos anos anteriores, exceto em 2003 e 2005. Portanto, reatou com os grandes incêndios de 2003 e 2005 na sua dimensão.
A parceria entre uma comunidade do Porto e a Associação Campo Aberto, em que eu trabalho, foi na altura reanimada por sugestão de uma das pessoas, natural de Passos de Sousa, onde estavam a manifestar-se então muitos incêndios. Falou-se de um projeto a longo prazo… duzentos anos.
E foi essa expressão que ela utilizou que desencadeou o meu interesse. Porque de facto era constante vermos atuações e reflexões sobre o que se passava na nossa floresta, no nosso coberto vegetal, mas sempre a um prazo muito curto e nunca vendo as questões em perspectiva.
Para tal propus organizarmos em parceria um encontro que ficou intitulado: uma aliança para acabar de vez com os fogos. Convidei então três pessoas, que estão aqui presentes. Já as conhecia, graças às minhas atividades, interesses… e fizeram então a introdução do debate que se realizou no dia 29 de outubro de 2016, o Miguel, o Jerónimo e o Jorge.
Já todos os incêndios tinham acontecido, sobretudo em agosto, mas tinham continuado. Neste encontro, com perto de trinta pessoas presentes, todas foram chamadas a fazer uma curta apresentação inicial para acabar de vez com os fogos e este “vez” consistia em terminar com o gigantismo que os fogos atingiram.
As coisas foram evoluindo e chegámos a um nome um pouco diferente: uma aliança pela floresta autóctone. Elaborámos um conjunto de princípios ou pontos de partida, estão num site que foi criado em setembro.
Somos todos incompletos. Alguns mais, alguns menos. Precisamos de investir na educação do Homem, entender que o nosso planeta é um biótopo sensível. Como vamos transformar a teoria em prática?
Jerónimo Pinto Gama: A Aliança é, de facto, uma iniciativa, na qual o mais importante é a base de reflexão que antecede a ação, e que é precisamente um projeto para a reflorestação.
Falta ou não a educação ambiental nas escolas?
José Carlos Marques: Tenho acompanhado um pouco as questões de ligação ambiental. Tenho uma opinião muito mitigada sobre esse assunto. Sem dúvida que a educação é base, a educação é fundamental. Há tantas formas de concebê-la e de a pôr em prática que, sem irmos um pouco mais longe, cai-se sobre a banalidade.
A educação nas crianças, nos mais jovens, é muito importante, sem dúvida, mas impõem-se às vezes algumas ilusões sobre a sua eficácia. É preciso não esquecer que a criança se torna num adolescente e o adolescente se torna um adulto; e há uma cultura adolescente e uma cultura adulta. E muitas vezes a cultura da infância desaparece, sufocada pela cultura adolescente e pela cultura adulta. Acontece por vezes.
O que precisamos de aprender?
Miguel Dantas da Gama: Há muito para aprender. Estamos metidos num problema complicado. A questão da floresta e dos incêndios é só uma consequência. Temos um problema muito mais profundo – o coberto vegetal – e à volta do mesmo, um conjunto de outros problemas que fomos agravando durante décadas: o ordenamento do território, o conhecimento. Estamos metidos em vários ciclos viciosos dos quais é difícil sair. Temos uma sociedade que critica, por exemplo, o presidente americano porque ele não reconhece, ou não aceita, que existem sérios problemas climáticos. Mas depois agimos como ele. Também não os reconhecemos ou não os aceitamos. Não mudamos. E isso também é uma realidade no mundo rural. Ainda ontem a televisão mostrava pessoas a fazer queimadas de noite. As pessoas não têm noção de que as coisas estão a mudar. Mostrar que as pessoas fogem ou ficam em casa no momento do incêndio só mostra que não sabem lidar com o meio. E não estão a acompanhar as mudanças. Temos neste momento um culminar de erros que têm a ver com a destruição do coberto vegetal da floresta. Têm a ver com o abandono do mundo rural. Alteramos o coberto e depois abandonamos o território. Se calhar uma coisa têm muito a ver com a outra. O problema agora é que o território que temos abandonado é um território muito alterado pelo Homem e que não sobrevive sozinho. Portanto temos que o recuperar para, eventualmente, as pessoas puderem regressar. Um território como o que temos atualmente – as grandes manchas de monocultura – não fomentam a fixação de pessoas, que deixaram o território porque primeiro o destruíram. E isto é um ciclo vicioso que nunca mais acaba.
O que é preciso fazer?
Miguel Dantas da Gama: As iniciativas particulares, privadas, são importantes. Mas atendendo à profundidade e ao âmbito ou à grandeza do problema, o Estado tem um papel fundamental. E o Estado é um problema. Neste momento é um problema porque a política do Estado e a ideia que tem para o futuro é o de se desresponsabilizar de resolver os problemas. Ora, só obrigando o Estado a voltar ao terreno e a empreender a mudança profunda que é precisa, com empenho de todos, seja o Estado central, o poder local e depois as comunidades rurais, que é preciso reestabelecer – é que conseguimos fazer uma grande alteração.
Qual é o primeiro passo?
Miguel Dantas da Gama: Reconheço o valor de iniciativas pontuais, locais, onde às vezes há um clique, uma ação que salta à vista e que é replicada, e que, de repente, ganha uma certa dimensão. Mas é difícil dar esse salto. É preciso mobilizar a sociedade. A sociedade tem que ter a noção de que vivemos com um problema grave que exige grandes alterações, e que estas vão levar décadas a fazer. Vamos ter de passar por um período mais ou menos longo no qual vamos ter que investir para depois termos retorno. Há que recuperar uma floresta que destruímos durante séculos. Este intervalo de tempo precisa de muita ajuda e de muito empenho. Só com o apoio do Estado, com a sua presença no terreno, com a recuperação de algumas estruturas existentes no passado, cujo uso não foi o correto mas que eram boas estruturas para trabalhar: implantação no terreno de viveiros florestais, guardas florestais, privilegiando os proprietários que aí investiram a longo prazo – é que poderemos ter uma recuperação a nível global do território.
Agora, há males que não se recuperam: a questão do ordenamento de território, porque foram permitidas um conjunto de barbaridades: casas no meio do nada, fábricas misturadas com habitações (aqui no Norte e no Centro é uma situação muito mais complicada do que no Sul). E o problema é que as pessoas que têm poder de intervenção, que têm voz na comunicação social, e que a controlam, são as mesmas que foram durante décadas, responsáveis por esta situação.
Hoje o poder local queixa-se dos incêndios, da falta de meios, mas foi o poder local quem permitiu – contra a vontade dos ecologistas, que eram sempre apelidados de radicalistas e de extremistas – o desordenamento do território. Construiu-se onde não se devia, ampliaram-se as manchas de monoculturas. Eles próprios criaram o problema. E hoje, a discussão continua a ser em torno da proteção civil, dos bombeiros e de todas essas infraestruturas. Andam todos uns contra os outros, porque são muitas as capelinhas que se movem para continuar com os seus interesses e não se vai ao fundo da questão – recuperar o que é preciso para que não haja incêndios. Talvez possamos ter menos mortes, menos – se tivermos uma proteção civil mais dinâmica, mais eficaz, mais controlada… Mas os incêndios não vão acabar com este tipo de floresta e este tipo de exploração.
E na contabilização do deve e do haver – porque hoje fala-se muito das arborizações de monocultura, que geram retorno, porque trazem muitas dívidas mas só se encaram as exportações. Mas depois não se contabilizam os prejuízos. E os prejuízos são assumidos por todos nós. Não é pelas empresas que exploram as monoculturas e que vão agora buscar madeira queimada ao preço da chuva. Portanto, isso não é contabilizado, tudo aquilo que se gasta. E já não falo na perda de tantas vidas.
Falemos de soluções. O que ganha mais importância?
Miguel Dantas da Gama: Não vivemos num mundo imaginário. Nós não somos idealistas ao ponto de dizer que queremos uma floresta bonita que garanta a biodiversidade. Não. Queremos uma floresta que acabe por ser rentável, vai levar é tempo. Mas uma floresta que permita às pessoas retornar ao interior do território, viver com essa floresta. E que permita uma quantidade de produtos, desde a madeira aos frutos secos, passando pelo mel e pelas indústrias transformadoras de madeira. Que permita também o regresso de muitas atividades e profissões que se perderam com a perda da floresta. Importamos madeira para mobiliário do Brasil e de outros países.
Portugal não tem petróleo, mas poderia ter um manancial – o nosso petróleo poderia ser uma floresta sustentada. Estamos a ter um boom turístico neste momento também derivado aos problemas que se vivem noutros países. Mas quem é que vem fazer turismo para um país onde morrem cem pessoas em dois ou três dias? Eu tenho dificuldade em arranjar mais dois ou três acidentes em Portugal no meu tempo de vida em que tenha morrido tanta gente! Houve um desastre de avião na Madeira e mais um ou dois desastres, um de comboio. Mas morreram cem pessoas! Cá fora, na rua. Apareceram mortas na rua.
Agora têm de se desmontar um certo número de discursos que são contraditórios. Porque muitas das pessoas que se queixam são vítimas da sua própria, eventualmente, ignorância. Mas foram levados a isso também.
Como é que vamos diminuir a ignorância? Vamos começar na escola?
Miguel Dantas da Gama: Sim, sim. Mas tem que haver várias paredes na comunicação social. A comunicação social também tem que mudar. Explora os sentimentos das pessoas que estão a sofrer. E deviam pôr na ordem do dia todas as ações que são necessárias para evitar que os incêndios ocorram. Não, eles vão discutir e vão falar das pessoas para explorar a amargura, o sofrimento. E não vão ao cerne das questões. Ouvem os bombeiros a dizer mal do Governo.
E o que que pretendem fazer como associação?
Miguel Dantas da Gama: Juntar. Neste momento estamos a tomar pulso e a ver qual será a receção da sociedade, a opinião pública, se há muita gente que comunga das nossas ideias.
Quantas subscrições receberam?
José Carlos Marques: Setecentas e quarenta subscrições num mês. Mas isto não é uma petição habitual em que se procura arranjar milhares de nomes e depois se entrega a uma autoridade qualquer. É uma espécie de manifestação permanente de centenas de cidadãos que esperamos que continue a aumentar, que estão atentos e que procuram uma certa unidade, uma certa união a nível local, a nível concelhio, por exemplo, para colaborarem entre si numa atitude de vigilância e de acompanhamento do que se está a passar no seu próprio local, no seu próprio concelho. Incentivar a plantação.
Jorge Moreira: Incentivamos as pessoas a se reunirem e irem para o terreno, para as autarquias… Mas estas podem também arranjar soluções para transformar, digámos, aquilo que está mal na floresta, e voltar a colocar, em especial, as árvores nativas, que são muito mais resistentes ao fogo e, como o Miguel disse, fixam as pessoas no interior.
José Carlos Marques: É precisamente esse o trabalho: suscitar a cooperação e aproximar coisas que estão separadas e que podem convergir. Estamos a tentar criar uma voz e a tentar que a mesma seja ouvida. E essa será a primeira fase.
Miguel Dantas da Gama: Há uma questão que foi colocada há bocado e que para mim é transversal, que é a questão da educação. O José Carlos falou, e muito bem, que por vezes perde-se muito entre a infância e tudo o resto. A educação para mim é fundamental mas tem que ser transversal, da infância à idade adulta. Temos que criar escolas que estejam em contacto com a realidade. E temos de criar uma cultura que esteja em contacto com a realidade da vida. Não é, digamos, uma educação para a competição. Nós temos de criar uma educação para a cooperação. E temos de olhar para a Natureza, não como algo morto, inerte, que só tem valor económico, mas com respeito, com cuidado, com amor, com a capacidade de ver que é realmente a nossa mãe. É a Natureza que nos dá, e é importante ensinar isso nas escolas. Certamente que vai mudar todo o paradigma da visão que temos da Natureza. Criaremos uma sociedade completamente diferente.
Em vez de ser uma sociedade predatória, que destrói, que consome, que explora, vamos criar uma sociedade inclusiva, que tira rentabilidade, que tira os seus bens, mas que cuida também. E isso para mim é transversal: tem que se trabalhar desde a infância e isso têm a ver connosco, com relacionamentos.
Como é que fazemos isto?
Miguel Dantas da Gama: Temos que repensar o nosso modo de ser e estar aqui.
Jerónimo Pinto Gama: A nossa prioridade é a mudança do paradigma florestal. Portanto, a tónica não pode ir para iniciativas de reflorestação. A tónica tem que ir para um planeamento profundo e organizado da floresta. Tem que haver planos florestais que se encaixem a nível local, regional e, posteriormente, a nível nacional.
Pessoalmente não sou muito de acordo com a reforma ou com o Plano Nacional da Floresta. Há planos regionais da floresta. Porque as florestas no Norte são diferentes das florestas do Sul, as adversidades das condições são diferentes entre regiões. E Este-Oeste a mesma coisa. Não temos medidas concretas desenvolvidas devidamente expostas para que esta mudança de paradigma aconteça.
No entanto, as medidas para uma floresta autóctone e para esta mudança acontecer estão em fase de desenvolvimento e passam necessariamente por quatro a cinco planos: um plano jurídico-legal; um plano legislativo; um plano florestal propriamente dito, na aplicação de medidas no terreno; um plano cívico… e, durante esta entrevista ocorreu-me ainda um plano a nível empresarial. As empresas também têm uma responsabilidade social para a qual devem ser chamadas.
Obrigado.