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Uma história baseada em Georg Büchner de 1839, em três partes, por Uwe Heitkamp em 2023

Os invasores
Uma história baseada em Georg Büchner de 1839, em três partes, por Uwe Heitkamp em 2023

Uma história baseada em Georg Büchner de 1839, em três partes, por Uwe Heitkamp em 2023

Sábado, dia 20 de maio de 2023.

Primeira parte.

O que aconteceria em Lisboa, se os OVNIs aterrassem no meio da Avenida da Liberdade e os alienígenas começassem a comer humanos? Lenz tinha afastado este louco pensamento e já fizera a sua mochila na noite anterior. Sandes, fruta, água, uma pequena farmácia para qualquer situação. De manhã cedo, partiu das Caldas. Tinha uma missão a cumprir. Ainda o dia não tinha clareado. Planeara subir pelo caminho do Esgravatadouro até à Fornalha. Passava-se lá esta história dos invasores. Ele queria ir no seu encalce. Nevoava sobre os vales, aqui designados por barrancos, e a humidade formava os primeiros farrapos de nuvens. Era como atravessar o nevoeiro. Depois surgiu o sol, súbito e rápido. Quando o sol se ergueu do mar, ele prosseguiu, indiferente. Nada se interpunha no seu caminho, ora acima, ora abaixo. Examinou a vegetação. A floresta diversificada estava destruída. Um único tipo de árvore avançava progressivamente na destruição da diversidade. E todos olhavam com indiferença, como se não tivessem visto o perigo aproximar-se.

Pelo caminho, detetou Zé Eduardo, o pastor, com as suas cabras. Sentiu saudades do Senhor Florival, o solitário e último silvicultor, pai do Zé Eduardo, que tinha morrido no Inverno passado. Lenz não sentia qualquer cansaço, só que, às vezes, sentia-se incomodado por não poder baixar o olhar. Há anos atrás tinham-se registado fogos florestais aqui. Agora, a vegetação selvagem tinha tomado conta do lugar. Os eucaliptos e as acácias lutavam pela supremacia. Qual a árvore mais forte? Mas na verdade, o que estava em jogo era algo bem diferente. Ninguém parecia sentir o perigo. Sobreiros carbonizados jaziam à beira da estrada. Aqui, um pinheiro queimado. Além, uma ruína sem tecto. Tudo tão vazio. A natureza em desequilíbrio. Pelas janelas, ele conseguia olhar o céu. Duas horas depois, chegou à Fornalha. Então, virou e subiu a encosta a pique. Pastagens verdes e, novamente, ruínas. Já não vivem aqui pessoas.

No início, apertava-se-lhe o peito quando sentia o seu passo firme no asfalto e a névoa envolvia as formas, para as libertar um pouco depois. Isso instigava-o por dentro, ele buscava algo, tal como um sonho perdido, mas nada encontrava.

Era-lhe tudo tão pequeno, tão próximo, tão húmido, que teria desejado colocar a Terra perto de um forno; não compreendia como podia demorar tanto tempo a subir uma encosta, porque agora tornava-se uma tarefa árdua alcançar um ponto longínquo; pensava que o conseguiria fazer em apenas alguns passos.

Apenas ocasionalmente, quando a tempestade lançava as nuvens do cume para os vales, fazendo subir o nevoeiro para a floresta, e as vozes à volta das rochas acordavam, ora como trovões indistintos ao longe, ora como troadas em fúria, como se quisessem cantar a Terra no seu júbilo selvagem, e as nuvens irrompiam  como indomáveis corcéis relinchantes, com o sol a irromper nas brechas, e tocando a Terra… Tudo isto era real?

De pé, fez uma pausa, ofegante, o corpo inclinado para a frente, os olhos e a boca bem abertos; achava que tinha de atrair a tempestade para dentro de si, absorvê-la toda em si, sentia-se a expandir-se e a espalhar-se pela terra, a enterrar-se no universo. Era um prazer doloroso.

E voltou a imobilizar-se, deitando a cabeça no musgo e semicerrando os olhos. A terra afastou-se depois dele, tornando-se pequena como uma estrela errante e mergulhando numa torrente impetuosa, com águas límpidas por baixo. Mas foram apenas instantes. Depois, levantou-se, sóbrio, firme, tranquilo como se um jogo de sombras tivesse passado diante de si. Havia esquecido tudo o que acontecera antes.

E foi assim chegou a Corte Grande e visitou o local onde a árvore estivera, uma grande e velha árvore, que precisava de onze homens para a abraçar. O caminho que o levava pelo pequeno sobreiral  acalmou-o de novo, tranquilizou-o e fê-lo acreditar, uma vez mais, que o mundo ainda não estava perdido. Começou a cantarolar uma canção e descansou um pouco, comeu uma fatia de pão com manteiga e ouviu o chilrear de um rouxinol que se tinha enganado na estação.

Quando o fogo chegou, a árvore havia simplesmente sido esquecida enquanto os habitantes corriam para se abrigar. Os bombeiros estavam ocupados noutros locais e o fogo ganhou passaporte para arder. Esta árvore havia presenciado romanos, mouros, espanhóis e todos os que por lá passaram ou viveram. Uma árvore não pode fugir. Tinha sobrevivido ao incêndio florestal de 2003. Alguns especialistas estimaram que tivesse 2.000 anos. Agora, pouco mais era que um toco queimado, ali parada, como que pronta para o seu próprio funeral, vestida de preto. Tinha sido simplesmente esquecida. Estes pensamentos nunca mais o abandonaram.

Por volta do meio-dia, Lenz atingiu o cume da montanha, de onde se podia ver, de uma só vez, o mundo inteiro. As rochas aguardavam que as escalassem e, de repente, chegou a altura. Do topo da Picota, ele podia ver o mar a Sul, a Oeste, e a terra a Norte e a Leste. Isto era a Europa. Aqui findava o velho mundo. Além mais estava a Mãe África. Aqui começava a Europa. Procurou o caminho com os olhos. Na planície a Oeste começava a descida. Sentou-se no topo por um pouco. Entretanto, algo em si tinha acalmado; as nuvens permaneciam firmes e imóveis no céu até onde a vista alcançava, nada mais do que o céu, de onde desciam largos flancos, e tudo tão quieto, azul e branco, a amanhecer.

Sentia-se terrivelmente só, estava só, completamente só, queria falar consigo mesmo, mas não conseguia, mal se atrevia a respirar. A flexão do seu pé soava como um trovão por baixo de si, tinha de sentar-se. Um medo sem nome apoderou-se de si, um medo deste nada pleno, deste vazio à sua volta. Levantou-se e voou pela encosta abaixo. Já era de tarde, o céu e a terra fundiam-se num só. Sentiu como se algo o perseguisse, como se algo de horrível estivesse prestes a alcançá-lo, algo que as pessoas não podiam suportar, como se a loucura o perseguisse a cavalo. Eram as acácias. O cheiro assombrava-o. De repente, estavam por todo o lado.

Finalmente ouviu vozes reais, viu luzes, sentiu o coração a bater; disseram-lhe que ainda tinha meia hora a descer até Monchique. Entra na aldeia; as primeiras casas, isoladas, oferecem-lhe orientação, as luzes a brilhar nas janelas, de passagem vê crianças à mesa, mulheres idosas, raparigas, todas com rostos serenos. Sente que a luz emana de dentro delas. Sente-se bem ao chegar ao Pé da Cruz para esperar pelo autocarro que o levaria de volta às Caldas, à sua pousada. O seu primeiro dia na natureza estava a chegar ao fim. Já estava a escurecer…

 

Uwe Heitkamp (62)

jornalista de televisão formado, autor de livros e botânico por hobby, pai de dois filhos adultos, conhece Portugal há 30 anos, fundador da ECO123.
Traduções: Dina Adão, John Elliot, Ruth Correia, Patrícia Lara, Kathleen Becker
Photos:
Uwe Heitkamp

 

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