Nasci em Goa, na Índia – Domingos Xavier Viegas abre conversa com a ECO123 no jardim da editora. Sou um cidadão português e cheguei com os meus pais e três irmãs a Portugal em 1957. Os meus pais queriam dar-nos uma educação superior e entenderam que tal não seria fácil se ficássemos em Goa. O meu pai era funcionário público, e pressentia que a Índia queria anexar Goa, por isso decidiu vir para Portugal. Saímos de Goa em 1957 e em 1961 esta foi tomada pela União Indiana. Depois disso, voltei algumas vezes a Goa e mantemos contacto com familiares, em Goa, na Índia, e no Paquistão. Temos família por todo o mundo.
Em miúdos sonhamos com o nosso futuro. Era este o seu sonho, ser professor na Universidade de Coimbra e especialista em incêndios florestais?
Não. O meu sonho em pequeno era ser engenheiro aeronáutico. A aviação era a minha paixão e o que eu gostava era de construir máquinas, neste caso, aviões. Mas depois, pouco a pouco, fui tendo que orientar-me, porque em Portugal não havia essa oportunidade. Também não tinha intenção de emigrar, achava que devíamos prestar o nosso contributo ao país. Procurei na carreira académica uma área que me desse a liberdade de fazer, não só aquilo de que gosto, mas que entendia como sendo importante e necessário.
Como chegou até si o assunto dos incêndios?
Sou engenheiro mecânico. A minha especialidade é a aerodinâmica, e trabalhava em aerodinâmica industrial, engenharia do vento, escoamentos com interesse para a indústria, como por exemplo a aerodinâmica de veículos e a ação do vento sobre estruturas, mas sempre me preocupei com as questões da sociedade. A mim preocupa-me, por exemplo, a questão dos acidentes de tráfego, e outras questões que afetam a sociedade, desde logo, os incêndios florestais.
E quando sentiu verdadeiramente esse apelo?
Quando era jovem, tinha 16 anos, ocorreu um acidente em Sintra, onde morreram 25 bombeiros. Estávamos em 1966. Fiquei bastante tocado – até porque vivia perto dessa região e visitei o local do acidente poucos dias depois. Mais tarde, em 1985, pouco depois de ter terminado o meu doutoramento, aconteceu um acidente em Armamar no qual morreram 14 bombeiros de uma mesma corporação. O que se lia no jornal é que o vento tinha mudado, tinha feito um movimento imprevisto e assim tinha causado a morte daquelas pessoas. Pensei que se estudamos a ação do vento sobre várias realidades, por que não tentar compreender o que se passa nos incêndios, para ajudar as pessoas e evitar este tipo de acidentes?
As suas pesquisas são conhecidas pela sua precisão. Investiga as causas, muitas vezes inexplicáveis, dos incêndios florestais. A sua equipa descobriu a origem dos incêndios florestais de Pedrogão Grande, em 2017, e de Monchique, em 2018. Li com grande interesse o relatório para a Assembleia da República. É trabalho pioneiro. Como começou?
Comecei, nessa altura, em 1985, um pequeno projeto, com os meus estudantes e com colegas. Pouco a pouco foram-se juntando mais pessoas, até de outras especialidades – quase ninguém estudava incêndios florestais em Portugal – e fomos obtendo apoio, primeiro para pequenos projetos, depois conseguimos projetos da União Europeia. Assim, fui criando um programa de investigação com diferentes disciplinas, diversas áreas, formando uma equipa, criando condições de trabalho e estruturas. Atualmente temos algum trabalho feito e uma capacidade de prestar serviço. Estamos satisfeitos porque cumprimos o nosso propósito de compreender melhor o comportamento do fogo e de contribuir para a melhoria da segurança das pessoas. E temos conseguido fazer algumas melhorias no sistema, particularmente em relação à segurança dos bombeiros. Falta agora fazê-lo em relação às pessoas.
Aos 69 anos ainda trabalha?
Sim, porque gosto. E assim será enquanto tiver forças e capacidade mental e as pessoas me quiserem. Trabalho há perto de 40 anos no tema.
Aos 69 anos ainda trabalha?
Sim, porque gosto. E assim será enquanto tiver forças e capacidade mental e as pessoas me quiserem. Trabalho há perto de 40 anos no tema.
Se olharmos para trás, o que é notável?
A história dos incêndios em Portugal. Numa estatística relativa aos anos 40 vemos a área ardida e os incêndios. Se repararmos na escala logarítmica, e não na escala linear, vemos que dos anos 40 até aos anos 70 tínhamos no país dezenas ou centenas de incêndios. Depois, houve um salto, nos anos 80, e agora estamos a ter 20 a 30 mil ocorrências/ano. O valor de área ardida segue o mesmo padrão. Foi em crescendo e agora estamos com três anos marcantes: 2003, 2005 e 2017. Foram anos catastróficos.
O que explica este crescimento?
Há muitos fatores. Desde logo, nos anos 40, houve a plantação de pinhais, que foram crescendo e ficaram disponíveis para arder nos anos 60, 70. Nesse período de tempo, as pessoas foram abandonando os espaços rurais, deixando de utilizar o mato, de cultivar os campos agrícolas que envolviam as aldeias e as protegiam do avanço do fogo. Também não podemos esquecer que, durante estes anos, a temperatura aumentou pelo menos dois graus. Tudo isto são fatores que contribuíram para esta tendência nestas décadas. É claro que houve outros fatores – por exemplo, a melhoria dos sistemas de combate, mas é um processo em crescimento, e não parece estar parado.
Os efeitos das alterações climáticas têm sido tidos em conta no seu trabalho?
Podemos observar, pelo menos desde o ano de 2000 até agora, que chove cada vez menos. Vivemos verões e secas prolongadas com ondas de calor. Nestes anos, temos assistido a uma melhoria da eficácia do combate, que é um dos principais setores que têm tido progressos no nosso país. Por este motivo, dos 20 ou 30 mil incêndios que se iniciam, apenas 20% são superiores a um hectare. O grande problema é o elevado número de ocorrências/dia, no conjunto de anos, entre 1997 e 2017. Houve dias em que tivemos mais de 500 ou mesmo 600 ocorrências – e isto são dias no pico do verão. E o resultado disto é que, quantos mais incêndios temos por dia, mais floresta arde. Mesmo que melhorássemos muito a eficácia de combate, corremos o risco de ter anos como o de 2017, em que as condições meteorológicas são tão adversas, arriscam aem que se pode vir a queimar muito mais.
Em 2017 tocou a vez ao centro e norte do país – ardeu desde o mar até ao interior – em três datas. Temos a ocorrência de vítimas por vários concelhos. Desde 2017, a nossa equipa tem prestado muita atenção a uma outra estatística – que é a dos acidentes mortais – foi na taxa dos 120 mortos. Estudou, em detalhe, estes dois eventos e, em relação ao incêndio de Pedrogão, inflamou rapidamente, com temperaturas muito altas. Aqui no Algarve sabem o que são temperaturas de 40, 42 graus, mas muita gente nas cidades desconhece. A estas temperaturas, os ventos, que se expandem em tempestades, desempenham um papel especial no combate ao incêndio florestal. O que têm os bombeiros de enfrentar quando estão perto de um incêndio com estas temperaturas?
Foi isto que aconteceu em Pedrogão, pois registaram-se dois focos, que fizeram com que os bombeiros se tivessem dispersado. A nossa equipa, na investigação que fez, estabeleceu que estes focos foram iniciados numa linha de 15 kilowatts, em dois locais, a cerca de três quilómetros de distância, com uma hora de intervalo. Atacaram primeiro o de Escalos. Depois, quando surgiu o outro já não tiveram recursos para o atacar. Havia um conjunto de câmaras – que registaram todo o incêndio. Muitas pessoas desconhecem que houve uma uma trovoada, em direção ao incêndio. Esta trovoada, quando se aproximou, fez aquilo que podemos ver nas imagens de video. Entre as seis da tarde e as 6h15 o trabalho investido nestes dois focos de incêndio foi deitado fora e o fogo espalhou-se por uma área muito grande do território. A partir daqui, se o incêndio já era difícil de controlar, tornou-se impossível. Foi entranado nas aldeias, pondo em perigo as pessoas.
Como registou tantas mortes? Como devemos comportar-nos em casos de incêndios florestais?
Estive no local no dia seguinte de manhã e assisti ao levantamento destas vítimas. Falei com todos os sobreviventes, pessoas que passaram por ali, que estiveram naquela estrada. E aquilo que ouvi e que aprendi, julgo que deveria ser do conhecimento de todas as pessoas, no sentido de procurarmos evitar estas situações. Neste troço da estrada, havia taludes com árvores até às bermas. Um pinheiro que já estava inclinado caiu e atravessou a estrada. O facto de este pinheiro estar ali fez com que dez carros, que entraram neste troço, não conseguissem sair de lá. Eu conheço pessoas cujos familiares morreram precisamente por causa deste pinheiro. Sabemos que houve casos de pessoas que estavam em sua casa, às oito da noite, e que decidiram sair e acabaram por morrer na estrada. No tanque de uma aldeia de Nodeirinho, sobreviveram onze, doze pessoas, mas perto delas, em volta da aldeia morreram outras tantas. É importante que as comunidades saibam que há este tipo de recursos. . Os meus colegas andaram durante três meses de casa em casa para fazer o levantamento de todo o impacto que o incêndio teve. Este levantamento permitiu-nos saber que a maior parte das casas foram destruídas devido ao impacto de focos secundários, e devido ao facto de não haver limpeza em torno das casas.
Vamos falar sobre Monchique?
Em Monchique tive contacto com vários incêndios. O primeiro foi em setembro de 2003, quando houve uma vítima, o senhor João Nunes, que eu saiba foi o único caso mortal no Algarve. Eu vim a Monchique para estudar esse caso. Depois, temos o incêndio de 2018 que, segundo os dados, começou no local da Perna de Negra, muito próximo de uma rede elétrica de média tensão (15kV) que atravessa o local de início do incêndio. Em particular as linhas que atravessam áreas com eucalipto deverão ser alvo de extrema atenção, devido ao rápido crescimento em altura de árvores desta espécie, potenciando descargas por toque ou mesmo por queda das linhas de transporte de energia em alturas de vento muito forte. Tenho conhecimento de que houve a evacuação do Alferce que não correu como as autoridades pretendiam. Pensa-se cada vez mais que é preciso deixar que as pessoas que estão válidas permaneçam para defender o que é seu.
O que podemos fazer para evitar os incêndios florestais?
Sabemos que é um problema complexo, difícil de perceber, muitos começam por ação humana, alguns por negligência, outros por má intenção, mas não podemos esquecer aquelas origens que referi, aquelas ignições que são começadas de outra forma. Os cidadãos fazem parte do problema e temos que trabalhar para o resolver. O Sistema Nacional de Defesa da Floresta Contra os Incêndios assenta em quatro pilares: ICNF e ANPC e a GNR. O quarto pilar somos todos nós. Todas as entidades que não fazem parte daqueles três outros pilares somos nós que o constituimos. É também importante referir o papel das autarquias. Temos que reagir, aproveitando sobretudo este momento porque se verifica uma vontade de fazer. Os incêndios de 2017 e 2018 vão-se repetir. Aconteceram e irão voltar a acontecer no futuro. As consequências é que não podem ser as de 2017.
Uma das coisas que referimos é que devem ser asseguradas melhores condições de qualidade de vida para os residentes dos espaços florestais. Verificamos que o nosso país durante anos e anos não tem aproveitado os recursos. Temos que preparar o país para um cenário de incêndio extremo. Não podemos pactuar com uma ausência de planos de defesa. A população não deve abandonar as casas mas, em caso de necessidade, o plano de evacuação deverá ser executado. Temos que melhorar a prestação de socorro médico em caso catástrofe, criar um espaço de busca e salvamento, com recursos próprios. Muitas terras criaram as suas próprias entidades de proteção. Não são bombeiros, mas são pessoas que se treinam, equipam e têm viaturas como se fossem bombeiros. Em 2016 houve um incêndio no Funchal – e nós visitámos este incêndio. Uma das coisas que observámos foi uma casa, que era das mais vulneráveis e ficou intacta. Ela estava intacta porque o seu dono teve o cuidado de preparar-se para a defender, com tubos de água em toda a volta. O fogo chegava por todos os lados e não destruiu esta casa.
Na nossa investigação estamos a tentar desenvolver soluções. Se existisse um sistema de defesa em volta das casas ou das aldeias, daria muito mais segurança às pessoas e evitava a sua destruição. As lições que temos que aprender são estas. Temos que enfrentar os problemas, melhorar os nossos conhecimentos sobre os incêndios, e estar cientes de que, muitas vezes, estes incêndios estão acima da nossa capacidade de os extinguir. A sociedade tem que se preparar para enfrentar estas situações. Temos que reconhecer que em muitas situações as pessoas podem ser ameaçadas e terão que ser retiradas das suas casas, mas nem sempre será assim. Há que trabalhar com as coletividades para identificar os riscos, reduzir a carga de combustível e o nível de emissões. Temos também de encontrar maneiras de alertar as pessoas com antecedência. Temos que preparar as comunidades para resistir ao fogo, mesmo sem ajuda externa. Um sobrevivente dos incêndios disse-nos isto, porque viu morrer dois familiares, que fugiram: “Mesmo que eu viva 100 anos não fugirei de casa durante um incêndio”.
Muito obrigado pela sua visita a Monchique.