A cultura pode mudar os nossos hábitos?
Acredito no poder transformador da arte.
Porquê?
Porque as artes têm essa capacidade de desviar as pessoas da norma, da normalidade, e ao viverem essa outra experiência podem querer repeti-la. O projeto artístico também proporciona intuição, sensibilidade, capacidade de sair desse lado mais materialista da visão das coisas.
A minha intenção é oferecer objetos artísticos de grande qualidade a pessoas que têm outras culturas e que se aproximam desta cultura artística para retirar dela dividendos incríveis para o seu quotidiano e o seu interior. E esse é o desenho circular deste trabalho, que é devolver às pessoas um objeto. Nós fazemos um caminho, que é um caminho de encontro, para que elas possam fazer a curva e venham ter connosco. E isso é uma forma de reutilizar, de reciclar e de voltar às origens.
Se a arte tem a função de estimular e cultivar, tem esperança de que a cultura possa influenciar a economia?
Absolutamente. A arte ajuda-nos, por um lado, a compreender melhor a paleta que gira à nossa volta sobre determinado assunto. Há uma forma unívoca de ver as coisas e a experiência artística remexe nessa forma mais fechada. Esse remexer vai dar à pessoa a possibilidade de compreender certas coisas com um sorriso nos lábios.
Quando esta entra num teatro fecha a porta à realidade e entra num outro mundo. E esse mundo que vem visitar fala-lhe de outra maneira de uma série de aspetos que estão lá fora. Lembro-me que no CCB as crianças cresciam numa hora, elas saíam mais altas, saíam a falar, a sorrir, porque tinham visto coisas que tinham feito pequenos cliques; coisas de que tinham medo, deixavam de repente de ter; coisas que não compreendiam ou que eram objeto da sua solidão, deixavam de o ser, pertenciam ao coletivo.
Muitas vezes a experiência artística vai dar àquele que a vem ver, não só o plano de quem vem apreciar, no lado estético e ao nível dos conteúdos inerentes a essa mesma obra. E saber apreciar é saber compreender aquilo que é o seu sumo, os seus conteúdos, e isso fortalece. E as pessoas fortes têm capacidade de agir. E é por isso que as artes têm este papel fulcral.
Mas quando a pessoa abre a porta, sai do espetáculo e regressa à normalidade, o dia-a-dia domina novamente. Precisamos perguntar-nos como queremos viver. Como é que a Madalena quer viver?
Eu quero viver como vivo. Nesse sentido tive sorte. Encontrei bastante cedo o que gostava de fazer. E levei muito tempo a conseguir. Demorei uns 20 anos para conseguir seguir um caminho profissional que me deu liberdade de ação.
Trabalhei em muitas grandes entidades e fui sempre despedida. Houve sempre um momento em que me torno desconfortável. Sou muito ambiciosa, não para mim, mas nos objetivos a que me proponho, portanto, por vezes, esses objetivos são tão radicalmente humanos e estão tão perto das classes mais desprotegidas e do que é essencial à vida que certas forças não aguentam. A minha prioridade não é a prioridade, por vezes, do poder, por exemplo.
Foi o que aconteceu na Escola Superior de Dança/Conservatório. Tive oportunidade de abrir, com uma série de colegas, a primeira escola superior de dança, a primeira licenciatura na área. Era muito jovem, havia professores muito mais experientes que eu, que me convidaram, e eu dei o meu contributo com o que tinha da experiência na Universidade de Londres, e comecei a trabalhar com os professores mais jovens. Esta licenciatura ficou tão potente, que os alunos rapidamente começavam a criar e a ser capazes de ensinar, fazer pequenas peças dentro de espaços sociais onde pudessem ver o seu trabalho refletir-se em públicos, mesmo de pequena dimensão. E tudo isso, para uma visão mais clássica e mais ortodoxa do ensino académico, surgiu como uma ameaça. Portanto acabei por ser despedida com um dos meus colegas.
No CCB aconteceu a mesma coisa. O projeto tinha uma força tal que há um determinado momento em que essa força não é desejada. Eu fico nos lugares enquanto eu for útil. Aliás, no CCB fui eu que me demiti porque senti que o meu trabalho já não era mais útil.
Nasceu em 1956…?
Sim, a 30 de novembro. Sou Sagitário.
Vive os primeiros 18 anos em Ditadura. O que ficou desses momentos?
Eu e os meus irmãos corremos de casa para ver a Revolução acontecer na rua. E aquilo que mais me revolta é perceber que a Educação no sentido fundamental do termo não foi dada às pessoas que viviam no meu país nos 50 anos de Fascismo. E isso tem consequências gravíssimas ainda hoje na escola que temos. Uma escola que depois de 40 anos, claro que se transformou, mas tem vícios, grandes vícios.
O que mais me impressiona no impacto que o Fascismo teve no meu país é a ignorância, a falta de educação que não foi dada ao povo português. Este povo viveu na miséria durante todo o Fascismo – e refiro-me mesmo ao povo português, não me refiro à pequena élite que compunha a população portuguesa e que vivia sobretudo nas duas grandes cidades (Lisboa e Porto) e nalgumas cidades de província. Não teve oportunidade de estudar. O Estado não deixou que isso acontecesse para poder controlar à sua vontade o destino do país.
Vou pelo campo, pela serra, e ainda encontro pessoas que não sabem ler nem escrever, e outras que têm graus de escolaridade muito precários. E isso acontece, mesmo hoje, 40 anos depois de ter passado esse momento extraordinário que foi o 25 de Abril e que eu vivi quando tinha entre 17 e 18 anos, em Lisboa, estava eu na Escola Alemã.
Sendo uma pessoa das artes muito interessada na relação que a dança pode ter com a educação – foi uma das matérias que eu mais estudei, na minha licenciatura e depois no mestrado que fiz em Inglaterra, quando chego a Portugal e quero propor um programa, nestes 39 anos… comecei a trabalhar com 24 anos, tenho 63…
…dos quais 13 anos no CCB…
Sim, a trabalhar na relação que as artes podem ter com o país inteiro. Foi um período interessantíssimo, sobretudo os primeiros cinco anos dessa vivência no CCB com uma administração muito voltada para o papel que as artes podem ter no desenvolvimento de uma sociedade, e foram possíveis projetos de alargamento, expansão e comunicação com outras entidades culturais do país que começaram a ter os chamados serviços educativos ou as atividades artísticas e culturais para as populações da margem, que não são o público da tal élite (as crianças, o público mais velho, os mais iliterados e que nunca iriam ao teatro pelo seu próprio pé). Esse momento no CCB foi muito importante porque ele foi de alguma forma responsável pelo nascimento de uma série de outros projetos da educação ou da cultura pública.
Que memória tem sobre a sua infância, a sua mãe, a casa e a cozinha?
A minha mãe era e é, ainda, uma excelente dona de casa e fez questão de ensinar tudo aos seus filhos: engomar, pôr o caixote do lixo todas as noites na rua para a cozinha cheirar sempre bem – e nós morávamos no quarto andar, com imensas escadas – a disciplina de fazermos o que era preciso; ir de manhã, muito cedo, comprar o leite em garrafas de vidro; aprender a cozinhar. E como a minha mãe trabalhava, era professora, e o meu pai era engenheiro civil e de minas – trabalhava nos comboios – o meu pai era também um viajante -, havia dias em que nós – adolescentes – éramos responsáveis pela refeição. À quinta-feira era eu que cozinhava para todos. O meu pai também cozinhava e era uma cozinha saudável, cheia de legumes e peixe bom, cozido. Era tudo estufado, cozido ou assado, no forno, e eu trago comigo essa cultura, de fazer um prato maravilhoso com as coisas que estão no frigorífico. Os meus pais não eram ricos, havia toda uma economia na casa. Eu vestia os vestidos da minha irmã mais velha.
E com a disciplina da escola alemã, onde a minha mãe era professora, uma escola que nasceu quando os judeus alemães chegaram a Portugal. O meu avô, que tinha uma única filha, quis dar-lhe uma educação especial, que fosse uma arma para a vida. E é isso que eu sinto que o meu país não teve, essa arma para a vida que se chama educação. E estou sempre a trabalhar sobre isso, a ajudar as pessoas a saber mais através daquilo que eu sei, que é a arte.
Essa disciplina da casa dos meus pais por vezes era muito difícil porque eram muito trabalhadores e muito rígidos. Havia pouco espaço para a preguiça ou para o lazer. Íamos cavar com o meu pai, que tinha um pequeno terreno, apanhar batatas e ajudar. Eu aprendi a fazer tudo com as minhas mãos e também devo dizer que transmiti isso ao meu filho. Acho que as pessoas me consideram workaholic, eu adoro fazer o que faço. Quando era jovem lutava contra isso mas depois isso entrou dentro de mim. Sou muito disciplinada e muito concentrada sobre o trabalho, mas não é uma obrigação, é uma forma de ser e de estar. Eu quero viver a trabalhar porque eu sonho com o meu trabalho e acordo a fazer projetos e os jantares com os amigos são sempre com artistas a falar daquilo que gostariam de fazer. Estou sempre mergulhada, não sei estar de outra maneira.
Como é que eu quero viver? Quero ter saúde – isso eu gostava muito -, até agora tenho. Quando estive doente, também gostei, porque me aproximei de um estado que não me é natural. Aprendi bastante ao lado das pessoas que estavam à espera de ser operadas, em Santa Maria. Foram experiências muito fortes. E fui casada com um médico excelente – um cientista e clínico – que me ensinou imenso sobre imunologia. Vivemos em Londres e em Portugal muito tempo. Tive oportunidade de viver esse campo humano tão trágico, tão difícil, do tratamento de doenças como a SIDA. O corpo doente também é um corpo que me interessa muito, para a dança. Há muitos coreógrafos a trabalhar sobre isso. A saúde eu quero tê-la, para trabalhar, mas se me calhar a doença, vou fazer qualquer coisa com ela.
Reduzir o nosso consumo significa reduzir as nossas viagens, o nosso movimento, a nossa energia. Deitamos muitas coisas fora, todos os dias. Como é a sua balança a este respeito?
Tudo o que vê à sua volta são coisas usadas e velhas que reciclo e reutilizo permanentemente. Reciclar, reduzir o preço que as coisas custam e potenciar as matérias-primas é a minha filosofia. Concordo em reduzir o que são gastos de energia que desperdiçamos mas acredito na mobilização cada vez mais intensa da energia do homem, da mulher, das crianças e das pessoas mais idosas. Se elas se mantiverem em movimento, o movimento é a energia que nos coloca num ponto para querer chegar a outro – e isso é o desejo de fazer alguma coisa, de atingir um objetivo, de realizar determinada tarefa ou querer simplesmente estar vivo muscularmente – os músculos da mente, do corpo, dão-nos aquilo a que chamamos a sensibilidade – e isso separa, é uma grande tristeza.
Referia-me ao que é a atividade humana. A minha especialidade não é o petróleo! Sei que é uma fonte de energia, que é um objeto de desejo do capital, sei que o mundo inteiro depende dele, precisamente por causa do capital e do poder político mundial. Eu trabalho num campo dedicado ao estudo e à valorização da pessoa enquanto criadora de uma força interior, de um autoconceito ou de um acreditar em si. As pessoas neste momento – e sempre assim foi – quando são crianças, sabem utilizar de forma mágica a sua energia e depois vão-se esquecendo disso, vai crescendo uma preocupação sobre a atividade da mente, a atividade relacionada com o labor, com o status social; em termos de classe, de aceitação e de reconhecimento do que poderá ser a constituição de uma família, por exemplo.
Trabalham contra o esquecimento?
Sim. As crianças têm o corpo muito vivo. Os adultos vão esquecendo o corpo que têm. Só o utilizam para o sexo, como instrumento de trabalho, como lugar de uma identidade que procuram, de alguma forma para saberem quem são, e não procuram no corpo a sua energia vital para poderem ser felizes. Quando o corpo está vivo ele vibra e quando vibra está quente e quando está quente tem a possibilidade de uma sensação de liberdade e de poder muito grande, tenha que idade for. Claro que a pessoa vai perdendo qualidades físicas à medida que envelhece, mas ganha outras. Ganha na forma de olhar, de compreender, percecionar e sobretudo na forma de poder utilizar o seu próprio corpo. E todo esse saber é algo que me interessa muito passar às pessoas.
Eu estou mais interessada na valorização e no reconhecimento da energia individual e singular de cada pessoa, que pode ter, quando é ativada, consequências muito interessantes e muito positivas para a pessoa, individualmente, e para todo o meio que a circunda. Sou uma mulher da dança, e estou a falar da dança quando ela transborda para dentro da vida, quando ela sai da caixa negra, da black box, do palco, do estúdio e começa a inundar a própria vida. O meu trabalho é sobre isso. Há um trabalho político que é feito através destes espetáculos.
Cultura no Algarve era sempre para os turistas. Agora é para todos e temos, pela primeira vez, a oportunidade de crescer com a mesma.
Toda a nossa existência enquanto seres humanos é curtíssima, portanto há que trabalhar sobre a qualidade dessa vida, a qualidade do tempo que nos é dado viver e eu acredito que as artes, o discurso artístico e a sua prática têm um papel muito importante. As artes ajudam-nos a alargar horizontes, a ver as coisas por um prisma muito mais tolerante. Oferecer visões do mundo que são alternativas às que estamos habituados numa realidade quotidianidade mais ou menos fechada, mais ou menos culta, informada. As artes são mesmo uma arma para o desenvolvimento e a mudança das mentalidades e é nesse sentido que se pode falar de uma revolução. E isto são tudo revoluções feitas por dentro.
Disse que o meu trabalho é feito de baixo para cima mas o meu trabalho também é de dentro para fora. Todas as pessoas têm a dança dentro de si só que não o sabem, porque não percebem nem conhecem o que são os elementos essenciais da linguagem da dança.
Algarve 365?
Tenho trabalhado de forma vasta com pessoas de todo o género, prisões, hospitais, que vivem na rua, que estão na margem da sociedade, as crianças, os adolescentes… Este “Gatilho da Felicidade” que está no nosso programa – é um projeto com o qual me identifico em absoluto. Tem jovens de Aljezur e de Monchique, é feito pelos artistas João Galante e Ana Borralho e os jovens falam livremente sobre si, coisa que nunca fazem com os adultos. E é um espetáculo com uma força e uma potência que possui coisas com as quais os pais ficam chocados e envergonhados e é também um dos papéis que a arte tem. Quando falo em qualidade de vida, falo dessa consciência. Vejo a ciência e a arte como os gregos, em paralelo, com forças idênticas, e não só como um divertimento ou como um entretenimento.
Eu estou de passagem e vou para onde me chamarem e onde for importante estar. Às vezes convidam-me, outras, vou lá eu pedir. E é isso que eu estou a fazer com o Giacomo. Estamos há seis anos a pedir para fazer este projeto aqui em Monchique e Aljezur. Finalmente conseguimos. E queremos continuar, mas não é para ficar aqui confortavelmente a viver a terceira idade. Se calhar vamos ficar aqui, mas se decidirmos – e agora falo por mim – se decidir um outro sítio, pois irei. Enquanto eu puder fazer aquilo em que eu acredito vou fazê-lo e se não me deixarem fazê-lo aqui vou fazê-lo noutro sítio.
E como quer viver?
Quero viver em viagem, acho eu, porque vejo uma belíssima viagem, passar a serra todos os dias entre Monchique e Aljezur, a subir e a descer. É tão bonito!
A viagem continua…
Claro que sim, até ao último dia que eu puder.
Obrigado.