António Ferreira é o empresário responsável pelo projecto turístico da Aldeia da Pedralva. Após doze anos a trabalhar em publicidade e planeamento estratégico, e estando um pouco “saturado daquele mundo desinteressante e de vender coisas que não eram precisas”, decidiu dar novo rumo à sua vida. Já conhecedor da região e do seu potencial turístico, ao visitar a Aldeia da Pedralva descobriu a oportunidade que procurava. Formou uma sociedade com quatro amigos, e avançaram com o projecto. E, como diz, “ainda aqui estamos”.
ECO123:O que considera que são as mais-valias da recuperação inerente ao projecto da Aldeia da Pedralva?
António Ferreira:Comecemos por um aspecto muito importante, que é o de onde se faz a recuperação. Neste caso específico, estamos situados numa área cujos territórios são chamados de baixa densidade. E, portanto, mais propensos à desertificação. Isto para dizer que a requalificação dos grandes núcleos urbanos é muito importante – até porque também tem fenómenos de migração de pessoas para os arredores. Mas aqui estamos a falar especificamente de um território de baixa densidade, onde qualquer projecto, por mais pequeno que seja, tem uma importância extrema. É um território que se faz, na verdade, de milhares de pequenas economias. Quando aconselhamos os nossos clientes a comprarem o peixe no pescador, estamos a ajudar aquela família em específico e sabendo que esta, de outra forma, não teria maneira de subsistência. E se replicarmos isso à pequena mercearia, ao restaurante, à pessoa que aluga as bicicletas e aos milhares de pequenos negócios que existem, no fundo estamos a dizer que a recuperação de aglomerados urbanos neste tipo de território é de facto, talvez, o primeiro passo para tentar travar a desertificação. Não resolve tudo mas, para já, é o primeiro passo para o tentar fazer. Elegia isso como o mais importante de todos os aspectos. Porque haver pessoas é a base de desenvolvimento de qualquer território, não é?
E o que mantém o território vivo, no fundo.
Vivo e com dinâmica.
Quando começou o sonho da Aldeia da Pedralva, o apoio mais facilitado que encontrou foi junto da autarquia local, a Câmara de Vila do Bispo. Quais foram as maiores dificuldades que sentiu para conseguir concretizar este projecto?
A participação da autarquia não se verificou logo no início, mas quando se apercebeu de facto que o projecto estava a acontecer. Na primeira conversa sobre o “vamos fazer” – sendo que, na verdade, já estávamos a fazer -, sentimos que acharam que o projecto era louco demais, ou que era algo impossível. E por isso a recepção foi agradável, positiva, mas não a de “óptimo, vamos já fechar uma parceria”. Mais tarde, quando se aperceberam de que o projecto estava a acontecer houve de facto uma excelente recepção. A Câmara de Vila do Bispo inclusive fez aqui um investimento de cerca de um milhão de euros na recuperação exterior. Sei que havia na altura uma candidatura à recuperação de aldeias comparticipada em 60 ou 70%. E por isso, de facto, para uma Câmara acaba por ser um bom negócio recuperar uma aldeia – que não é toda nossa, nós temos cerca de 60% da aldeia -, a um custo de 300 ou 400 mil euros.
E também foi a nossa base que fez com que depois outras casas fossem reconstruídas. Hoje olhamos em volta e vemos casas por aí fora que não são nossas e que só foram reconstruídas porque isto passou a ser uma aldeia com vida novamente. Porque enquanto foi um monte de ruínas, a ninguém lhe passaria pela cabeça reconstruir a sua ruína no meio de outras ruínas – e por isso, quando se apercebeu de que a sua ruína estava no meio de casas recuperadas, achou que afinal era uma boa aposta. Por tudo isto, foi excelente a recepção da autarquia.
As autarquias têm aqui, de facto, um papel fundamental, até porque este tipo de projectos decide-se muito localmente. A própria legalidade deste projecto, que está registado como “casas de campo” é uma legislação totalmente de responsabilidade autárquica. E por isso, eles podem ajudar muito ou complicar muito. E afirmo isto porque as casas de campo, ao abrigo dos empreendimentos turísticos em espaço rural, têm uma legislação própria, mas depois existe uma legislação nacional do RGEU (nota: Regulamento Geral das Edificações Urbanas) sobre como construir uma casa. E é preciso ver que se estamos a recuperar património, não podemos estar à espera que todos os quartos tenham 9 ou 12 metros quadrados ou que as acessibilidades estejam todas previstas – precisamente porque estamos a recuperar património. E isso para nós, em vários casos, teve muitos custos, resultado de nos pedirem coisas que, na verdade, não eram necessárias.
Um exemplo caricato e engraçado: faz parte do nosso conceito o regresso às origens – e por isso as casas não têm rede de telemóvel, não têm rede de televisão, não têm rádio – mas obrigaram-nos a equipar as casas, mesmo as recuperadas, com sistemas de ITED (nota: Infra-estruturas de Telecomunicações em Edifícios) e de coisas que permitam ligar televisões e todas as outras tecnologias que nós não queremos. Felizmente que, mesmo com esses sistemas e nós estando próximos de Monchique, a televisão aqui não trabalha pois estamos num vale e o sinal da TDT não chega cá.
Isto para dizer que se a Câmara tiver vontade de ajudar, pode claramente, ao abrigo de algumas alíneas do turismo em espaço rural e nomeadamente dispensando alguns requisitos. Esta ajuda é muito importante para o investidor porque é óbvio que quem investe numa região destas, investe também muito por carinho, pois estes são projectos demorados, são projectos de recuperação, são projectos para fazer no tempo.
O empresário mais tradicional está muito mais interessado em encontrar um terreno à beira da praia, com vista para a mesma, e ali tentar fazer uma coisa qualquer do que embrulhar-se num projecto louco como este de encontrar 200 herdeiros e negociar ruínas. E por isso, como o custo do dinheiro é muito grande e não deixamos de ser empresários, obviamente que todas as ajudas que pudermos ter são bem vindas.
Portanto é mesmo muito, muito importante essa capacidade da Câmara Municipal perceber que este tipo de projectos são essenciais. Não apenas este – mesmo que fosse um mais pequeno, todos são muito importantes para este território. E por isso a primeira postura deve ser efectivamente de serviço público, de ajuda.
Porque às vezes, em algumas Câmaras confunde-se um bocadinho a função de serviço público, ou seja, “estamos cá para ajudar os nossos habitantes e os nossos empresários porque queremos o melhor para eles e por isso estamos ao serviço deles para desburocratizar, ajudar” com uma atitude de “somos nós que mandamos”. E isso por vezes baralha a lógica das coisas, porque não é uma questão de mandar ou deixar de mandar. Acho que, inteligentemente, eles têm que ajudar porque isto depois é uma “pescadinha de rabo na boca”: temos 12 pessoas a trabalhar connosco e 80% são de cá, vivem cá.
Acho que, e isso acontece muito no Algarve, de uma maneira geral, a importância da cultura turística – que não existe muito – não deve ser só de quem trabalha em turismo. Todas as pessoas têm um tio ou um primo ou um irmão que está ligado ao turismo por alguma área. E por isso a pessoa, mesmo que trabalhe numa farmácia, ou seja polícia, tem de ter também cultura turística. Porque se o turista tiver uma boa experiência com o polícia, na farmácia, na mercearia, em áreas que não são directamente associadas ao turismo, estas de certeza ajudam a que aquele turista tenha uma boa impressão, que passará aos amigos que nos visitam. E o tio, ou o primo, ou a irmã, que trabalham no turismo vão ter clientes. E por isso esta cultura turística é também muito importante.
E isso é uma parte. As Câmaras perceberem que podem desburocratizar, ajudar e não terem sequer pretensões de deixar que se mande, pois não é uma questão de mandar ou não mandar, é uma questão de serviço público.
Depois, uma segunda coisa mais geral, nacional: apoios. Tudo o que são projectos de inovação não têm apoio. Ou seja, quando tentámos explicar este projecto ao QREN (nota: Quadro de Referência Estratégica Nacional) ou similares, descobrimos que não cabe nos formulários. Eles entendem o que é um hotel em ruínas, um resort falido, um paquete que já não anda – essas coisas percebem. Recuperação de aldeias, de património, transformar um mosteiro num restaurante, tudo o que sejam inovações para fazer com que os espaços não morram, não cabe nos formulários. E isso é de facto um travão muito grande à inovação turística, a novos projectos.
Rejeitam a recuperação do património numa perspectiva empresarial e consideram que faz parte do tal serviço público que o Estado e as autarquias devem assegurar. E, por vezes, acabam por bloquear essa possibilidade.
Bloqueiam, exactamente. Porque é preciso perceber que aqui nota-se muito aquilo que nós costumamos chamar “os novos usos”. Os novos usos do mar, já toda a gente percebeu: o pai era pescador, o filho abriu uma escola de surf e o negócio do filho não é a pesca, é o surf. E os novos usos da terra, como as caminhadas ou as bicicletas. E também os novos usos, neste caso turísticos, do património autêntico e genuíno. Esses novos usos têm de ser entendidos para perceber que não é o dono que tem de recuperar. Não vale a pena insistir por aí. Se calhar o dono tem aquilo em partilhas, se calhar não tem dinheiro. Por mais que a lei diga que ele tem de recuperar a casa, ele não tem meios, e as coisas acabam por morrer por teimosia. E se não é recuperado desta maneira, tem de existir outra, seja ela turística ou outra, que deveria poder recorrer a fundos ou às ajudas que existam nessa área.
Vemos projectos se calhar muito menos interessantes, como hotéis em terceiras linhas, em ruas que não têm jeito nenhum, a irem buscar um fundo QREN. E provavelmente o fim deles vai ser o mesmo: quando aquela verba esgotar, não se vai aguentar. Porque o problema não é o hotel, é a localização ou o conceito ou outro factor. E depois vemos projectos de facto mais inovadores e atractivos a não entrarem nesses apoios, o que é uma pena porque passamos a ter mais do mesmo.
E perdem-se mercados em potencial.
E perdem-se mercados, tal e qual.
Que é no que a Aldeia da Pedralva aposta, numa oferta diferenciadora.
Exactamente. Sempre estivemos muito focados no desporto de natureza, nas bicicletas, na caminhada e estamos neste momento a preparar, para lançar daqui a um mês, um conceito de estância de hiking e biking, de caminhada e bicicleta. Ou seja, um bocado à semelhança do que existe na neve, onde temos as pistas verdes, pretas ou azuis, vamos ter o mesmo para caminhadas e a pessoa pode ter a sua base aqui na recepção. Criámos agora este conceito de recepção mais activa, e temos as bicicletas para alugar, os GPS com os trilhos, a assistência para os transfers. Ou seja, a pessoa, mesmo que não esteja a dormir cá connosco, pode chegar cá, usar os GPS, as cartas militares, fazer os trilhos, quando regressa lava a bicicleta na estação de lavagem, que é o antigo poço, e arruma. Este mercado de turismo de natureza é muito, muito, muito grande. São mais de 20 milhões de viagens na Europa.
E ao nível de Portugal também já existe mais adesão?
Começa. Eu acho que enquanto houve dinheiro, talvez como em outros países, achámos que a vaca que dava leite era aquela e por isso foi até não dar mais. Era a vaquinha do sol, a vaquinha do golfe. Só que veio a perceber-se que isso é curto, pois a sazonalidade aperta. No caso específico do Algarve, o destino tem uma sazonalidade cada vez maior e envelheceu com os seus clientes. Ou seja, aqueles ingleses e irlandeses dos anos 80 começam hoje em dia a serem muito séniores, porque na altura já tinham provavelmente 40 ou 50 anos. Hoje têm oitenta, e por isso é o tal turismo sénior de que se fala.
Porém, o grande problema é que os filhos e netos deles não estão a vir para cá. O destino não soube ser sexy, atractivo para passar de geração em geração. Porquê? Porque sempre se vendeu o mesmo. Se eu vou de férias para as termas com os meus pais, quando eu tiver a minha opção de ir de férias, as termas não serão a minha prioridade – a não ser que as termas se transformem num spa cheio de serviços e então aquilo tem uma continuidade. E o Algarve não teve essa continuidade.
Hoje já existe um discurso diferente, de facto, de um Algarve com 365 dias, um Algarve todo o ano. Aliás, na feira de turismo, a FITUR (nota: Feira Internacional de Turismo de Espanha; www.ifema.es/fitur_01), o stand de Portugal é só surf e o McNamara. De repente descobriram que há mais coisas para além dos séniores e do golfe. E faz todo o sentido, sendo nós um destino multiproduto.
Por exemplo, acho o golfe um excelente mercado mas nunca ninguém fez contas a quanto é que já se investiu no golfe. Até porque o golfe serviu depois como base para a venda de imobiliário. E foi isso também que ajudou ao turismo do Algarve a perceber de repente que essa estratégia acabou, porque era muito o imobiliário que alimentava esta componente do golfe. Deixaram de se vender casas e agora está no momento de se vender turismo, que era aquilo devíamos assegurar.
Uma oferta diversificada e enriquecedora, que permita a renovação das gerações turísticas – com novas experiências para os filhos, distintas das dos pais.
Claro.
Como foi a recepção das pessoas, dos habitantes da aldeia ao projecto?
Foi boa, foi boa. Hoje podia voltar a juntar novamente todas as pessoas a quem comprei as casas. Para já porque sempre disse o que é que ia fazer. Nunca contei uma história diferente apesar deles dizerem que eu era maluco. “Então nós queremos ir embora e agora você acha que vem aqui fazer uma coisa para as pessoas virem para cá?” Mas eu explicava que as pessoas na cidade têm muito stress e querem vir cada vez mais para estas zonas sossegadas, de lazer, de descanso. Eles ficavam um pouco na dúvida sobre o meu discurso. Não regateei grandes preços, negociou-se dizendo abertamente por quanto é que cada proprietário vendeu, para não haver especulação nem grandes diferenças de preços entre casas parecidas. Usei uma estratégia de abertura, que considerei ser a melhor de todas para não haver tentações ou problemas posteriores de “Então ele deu-me quarenta, e a ti deu-te oitenta? Não pode ser.” E por isso, abri o jogo nos preços.
Depois aconteceu outra coisa muito engraçada. Quando estávamos a aplicar o projecto, era sistemático, ao fim de semana, a visita das famílias que vinham assistir à recuperação da sua casa, com um sentimento como se fosse delas – o que era tocante. Ouvi expressões como “Eu não quero morrer sem ver a minha casa construída”. Existe aqui uma parte sociológica muito interessante. Chegar cá o senhor das finanças com quem falo normalmente e nunca me disse nada, e um dia diz: “Vou-lhe contar uma coisa. Venha cá ver onde é que eu nasci.” Foi a uma das casas. “Olhe, foi aqui que eu nasci, neste quartinho.” São coisas sociologicamente muito engraçadas, não é? Nós, portugueses, talvez temos muito esse traço da desconfiança. Então em meios pequenos, quando chega alguém é logo “Mas quem é este tipo novo que chegou aqui e está a comprar coisas?” Posto isto, correu muito bem. E tenho a sensação que também teve que ver com a nossa postura, uma postura simples e de fácil contacto.
E ainda há pessoas a residir na aldeia?
Muito poucas, infelizmente. Eu acho que se tivéssemos chegado não em 2006, mas em 2001, por um lado não só tinha ficado mais barato, como tinha sido mais fácil porque havia mais pessoas na aldeia. Chegaram praticamente a morar nesta aldeia 200 pessoas. Seguramente mais de cem pessoas. Digo duzentas porque nós temos 55 artigos urbanos na aldeia inteira, e se morassem duas pessoas por casa – o que seria muito normal – estaríamos a falar de 110 pessoas. Mas sabemos que havia muitas pessoas com família e filhos.
Sendo normal, na altura, existirem famílias extensas.
Exactamente. Era o princípio destas aldeias – as pessoas trabalhavam basicamente na agricultura e estes campos eram todos, todos cultivados. Esta aldeia, já na altura, era um pouco o centro das festividades. Temos aqui outras aldeias muito bonitas. Logo a seguir a esta, temos uma aldeia que é a Vilarinha, muito mais pequenina e cujo vale é ainda mais bonito que este. Depois havia a Endiabrada, mais em cima. Isto está cheio de pequenos aglomerados urbanos, mas este, pela dimensão, era onde se concentravam, faziam aqui os arraiais. Nesta casa azul era a Tasca do Tio Félix, onde acho que se faziam muitas partidas, aquelas coisas típicas de aldeia.
O Joaquim Machado, que tem aqui as ovelhas, vem sempre cá almoçar connosco e conta imensas histórias. O senhor da tasca era muito forreta e tinha galinhas, e eles estavam sempre a tentar convencê-lo a fazer uma galinha de cabidela. E às tantas como ele não se abria com a galinha, eles conseguiram roubar uma. E depois disseram-lhe: “Então pronto, nós trazemos a galinha e você só põe as batatas. Já sabemos que se não for assim, não vamos lá…” E ele respondeu “Ah, se for assim, faz-se.” E ele acabou por pôr a galinha e as batatas sem saber. Isto era uma aldeia com uma vida muito engraçada, de facto.
Depois morre como muitas outras morrem, não é? A geração que hoje tem à volta dos quarenta anos foi a geração que no fundo fez a grande debandada. Há 27, 28 anos atrás decidiram ter outras vidas e só ficou a geração dos pais, que entretanto vão indo embora, vão morrendo… Estão muito isolados. A carrinha da Junta de Freguesia ainda hoje continua a vir aqui à sexta-feira, pois era a única maneira de as pessoas poderem sair daqui, porque só havia duas motorizadas. E por isso vão à vila, voltam, estão aqui mais uma semana. É duro, é muito duro.
Eu, na altura em que estava a fazer este projecto de recuperação acabava por ter que gerir até alguns ciúmes. Porque se ia fazer uma escritura a Portimão e dizia “Sr. Fernando, venha lá comigo a Portimão que vou fazer uma escritura e sempre sai daqui.”, o Sr. Manuel e o Sr. João começavam logo a dizer “Mas porque é que não fomos nós?” Quando eu tinha um carrinho comercial só com dois lugares, e não cabiam lá todos.
Foi muito engraçado e, ao mesmo tempo, assustador, pois cheguei a ir a sítios aqui muito próximos e a pessoa que ia comigo dizer que não lá ia há 40 anos. Uma vez fui à Praia da Cordoama, pois estava lá o meu filho e fui levar-lhe a prancha de surf. E o Sr. Fernando, que veio comigo, estava com um ar muito estranho, a olhar para a praia. Estranhei o olhar dele. E ele disse-me: “Ah, é que não vinha aqui há 40 anos.” São realidades de que não temos noção, não é? Contam aquelas histórias da pessoa que mora em Monchique e nunca viu o mar, e isso ainda hoje acontece muito mais do que pensamos.
Mas no âmbito deste projecto, ainda não houve pessoas a tentarem vir aqui residir novamente, para esta zona?
Ainda não. Eu acho que com o tempo isso vai acontecer. Eu já andei a ver outros casos de benchmarketing sobre se tal aconteceu noutras aldeias com processos de recuperação e como eles conseguiram ter novamente pessoas. E só encontrei uma aldeia na Suécia que o fizeram, mas isto também tem a ver com cultura. O que fizeram lá, mal comparado com a realidade daqui, era como se eu fizesse um acordo com a Junta de Freguesia: a junta de Freguesia trazia aqui as pessoas durante o dia, que mantinham aqui a sua vida. Por exemplo, aqui a Dona Isilda que tem uma casa ao nosso lado e tem ali a horta, mora em Sagres.
As pessoas mostravam como era antigamente…
Exactamente, e ao mesmo tempo têm ali uma função – a Dona Isilda tem a sua horta, vem tratar dela, chegam uns clientes, atendem-se, leva à casa, mostra, mas isso é muito, muito cultural. É difícil para uma pessoa que hoje tem 28, 29 anos, e que podia ser quem voltaria para cá, porque isto era do avô ou ainda tem aqui casa, e neste caso é mais provável que esta seja mais do avô do que do pai. Porque alguém desta geração dos 40, quarenta e poucos já não estou a ver mudar-se para aqui. Talvez uma geração mais distante. Existe em Portugal o problema de, às vezes, quase se negar um princípio de vida que foi duro. Ou seja, as memórias. Falar-se na Pedralva, onde se jogava à bola descalço, onde não havia ruas. Quer dizer, é difícil a algumas pessoas perceberem que afinal a qualidade de vida está num sítio como este. Não está na cidade onde se mora num prédio com um vizinho do lado a fazer barulho, com a televisão, com o elevador que se estragou, uma vida sem jeito…
Estacionamento, custo de vida…
Sim, o próprio custo de vida, tudo. É morar na selva. Claro que, se eventualmente uma pessoa voltar para aqui, irá perceber que é tudo muito complicado, porque este regresso implica ter aqui um emprego, ter a escola para os miúdos. Voltamos outra vez ao custo de estar aqui, mas ir pôr os miúdos a uma escola longe – enfim, é o problema do mundo rural, é uma situação difícil. Agora, o ponto é este: deixá-lo morrer não. Ele, para já, tem de estar vivo para criar a base e a plataforma de desenvolvimento. E depois vai aos poucos. Este regresso à agricultura, aos novos produtos.
Até uma nova percepção da mais-valia desses produtos. Houve, durante muito tempo, uma aceitação de que o produto industrializado, a grande produção, pelo seu custo mais baixo era melhor e agora as coisas estão a mudar. As pessoas já são mais selectivas até na compra dos seus produtos de consumo.
Claro. E mercados como as aromáticas, são tudo novos produtos, coisas que surgem, que podem justificar o estabelecimento de uma pessoa novamente no mundo rural. Mas é complexo, é sempre complexo, de facto.
O desenvolvimento do projecto tem sido bem sucedido e satisfatório? Sente-se realizado a nível pessoal?
Tem sido demorado. Por várias razões. Primeira de todas: são projectos que demoram a acontecer no tempo. Este projecto demorou quatro anos até abrir. O que não se verificaria se tivéssemos comprado um hotel. E até há aqui um exemplo muito bom – e também de requalificação – que é o hotel Memmo Baleeira, em Sagres. Era um hotel antigo e foi recuperado, mantendo totalmente a sua traça. Demorou um ano a ser requalificado. Ou seja, um ano depois estava de porta aberta, a facturar. Isso é muito importante para projectos e portanto este projecto tem esse peso: quatro anos é muito, muito, muito tempo para aguentar o dinheiro das compras, da recuperação e da própria estrutura da empresa que tem que existir. Esta primeira é complicadíssima.
Depois uma segunda prende-se com termos um produto que até há bem pouco tempo não era, já nem digo acarinhado, digo que ninguém conhecia, nem queria saber, no Algarve. Algo género: “Hã? O quê, a serra? A Costa Vicentina?” Não, o Algarve era Vilamoura, e por isso estava lá o tal foco, ajudado por uma coisa chamada Plano Estratégico Nacional de Turismo (PENT) que diz que o Algarve é sol e praia e golfe. Eu percebo que esses sejam dois motores, mas não podem ser os únicos porque isso acontece em 30% do Algarve. Ou seja, em termos turísticos está-se a dizer “embora matar os outros 70%. Não interessam nada, por isso embora acabar com aquilo”. Não faz sentido nenhum em termos de gestão de território. E por isso, temos um produto aparentemente no sítio errado, pela estratégia vigente.
Vou dizer algo sobre alguém que até considero o melhor Secretário de Estado do Turismo que tivemos, o Bernardo Trindade, do PS. Eu lembro-me, como se fosse hoje, de comprar e guardar uma revista em 2006 com uma entrevista dele. Estava a começar este projecto e estava entusiasmado – vi o artigo sobre turismo, o Secretário de Estado, e resolvi ver o que é que ele dizia. E o que ele dizia, com ar muito sério, era em defesa do PENT, algo género: “é claro que o Algarve é sol e praia e golfe, não se vai querer que eu venda neve no Algarve e sol e praia na Serra da Estrela”. E eu pensei logo: “Ena, estou tramado. Estes tipos são uns idiotas, uns ignorantes e são eles que mandam no país. Estou tramado.” E reafirmo que ainda por cima o Bernardo Trindade foi o melhor Secretário de Estado que tivemos no Turismo. Ele fez muitas coisas boas pelo turismo e hoje, se calhar, também não pensará de igual forma. Até porque o pai dele tem um grupo hoteleiro, onde ele trabalha actualmente, e ele tem uma visão da hotelaria no terreno – não tem só componente estatal e política, também tem uma componente práctica. Mas fiquei impressionado, porque achei que estava a abrir isto no sítio errado.
Porque de facto, já nessa altura mas ainda hoje, estes projectos são muito mais acarinhados, por exemplo, no Alentejo. O Turismo do Alentejo, se tivesse este produto, levava isto ao colo para onde fosse. Porque o turismo no Alentejo faz-se de pequenas unidades rurais, dos produtos locais, do vinho, da gastronomia, da experiência, da autenticidade, do genuíno. É muito isto. Só que isto é no Algarve, e o Algarve é sol e praia e golfe e Vilamoura. mas agora isso está mais ou menos ultrapassado.
Mas tem corrido bem, o projecto?
Tem corrido bem. Agora é essa a última parte. Inovar. Porquê? Porque andei no Turismo do Algarve se calhar três ou quatro anos a falar de caminhadas, e olhavam para mim como se fosse um tipo louco. Mas fui a todas – falar, falar, falar. Porque era importante dizer que este produto existe e tem potencial e mercado. Hoje em dia, eles já falam de facto destas coisas. Agora há um trabalho comercial que eu tenho de fazer muito por minha conta porque a massa de operadores que existe no Algarve é uma massa de operadores como a Tui ou a Neckerman – querem encher aviões, autocarros e hotéis, é massificado. E por isso eles próprios não têm uma base de dados de operadores para me ajudar no meu produto, que são outros operadores. Que o Alentejo tem, lá está. Se eu estivesse no Alentejo, eles diziam “bem, os operadores são estes cinquenta. É com estes cinquenta que tu tens que falar.” E, se calhar, catalizava aqui as vendas. Por isso, este é um trabalho que eu vou fazendo por minha conta, felizmente com algum sucesso.
Só para ter uma ideia: temos cá, no Inverno, uma operação de uma agência inglesa em que a própria agência está cá a viver connosco – tem duas pessoas cá, tem trinta bicicletas, tem minibus. E estão sempre, sempre a chegar pessoas. E como esta operadora existem dezenas, dava para encher e sobrar clientes por todo o lado. Este produto tem clientes. Agora o trabalho comercial é um trabalho que eu tenho de fazer por minha conta e sozinho, sem grande ajuda. E isso demora, porque não há relações directas com o turismo. E por isso, eu diria que é um produto que vai ter sucesso, é um produto que eu acho que está na linha daquilo que é o turismo de natureza, turismo sustentável, turismo ecológico. Tem a dificuldade de quem vai um bocadinho à frente, a desbravar este caminho. Quer dizer, chega lá todo rasgado e todo cortado.
E quando tiver bastante sucesso, provavelmente virão outros atrás.
Hoje em dia já temos os hotéis tradicionais a vender programas de hiking e de tracking e a receber gruposO que é que temos no Inverno? Temos a natureza por um lado e temos de ter pessoas que tenham disponibilidade para viajar. Que são pessoas com mais de 50 anos. E por isso são pessoas que sempre caminharam, que têm boa preparação física, que gostam de caminhar e andar de bicicleta. E existem milhões, milhões desses clientes na Europa inteira. É impressionante – nós é que nunca estivemos para aí virados. Estamos a fazer este caminho.
E metas para o futuro? Consolidar o projecto?
É sobretudo consolidar o projecto, sim. Eu acho que aquilo que também nos dá ganas é trabalhar no sentido em que um dia vamos olhar para trás, quando isto tiver com uma ocupação que de facto não será 100% mas bastante, bastante, bastante grande. E encarar este tipo de operações e perceber que teria sido tão mais fácil se mais gente tivesse ajudado – e quando eu digo ajudado, não é apenas ajudar o nosso projecto, é ajudar o nosso país, ajudar o turismo a não estar focado em apenas dois produtos quando nós temos um Algarve tão grande, tão rico e tão diferente E os clientes querem isso, querem produtos diferentes, cada vez mais.
E genuínos. Pois um dos problemas do turismo do Algarve foi precisamente a descaracterização de muita da oferta.
Era o conceito “put heads in beds”, de encher quartos. Acho que houve até um certo abuso e o problema foi que se achou que aquilo nunca ia acabar – e acabou. E hoje em dia vê-se de facto que todos os produtos de segunda, terceira e quarta linha, produtos sem conceito, está tudo feito num oito porque não têm nada para oferecer a não ser preço. E porque o preço pode ser sempre destruidor de um destino, o Algarve tem de inverter essa curva do preço.
Dizem que foi o destino mais recomendado no Reino Unido, mas claro que quando vamos a websites ingleses e vemos que é possível ficar no Algarve em Outubro, duas pessoas, em meia pensão, com dormida, dois pequenos-almoços e dois jantares por 25€. Ou 18€ por duas pessoas a dormir e a tomar pequeno-almoço, percebe-se porque é um destino recomendado. Agora, não pode ser esse o caminho. Esse é o caminho, de facto, da não-valorização do produto. E em 2014 vai-se assistir a uma guerra muito grande, porque a Grécia quer agora endireitar-se, está a invadir, está a ir às feiras. Eu fui à Holanda na semana passada e estavam lá em força. E agora em Espanha, esta semana, na FITUR, com os tais preços baixos.
A guerra entre a qualidade e o preço.
Só que acho que isso não é sustentável. Eu acredito em dar substância e conteúdos, que é uma coisa que falta no turismo. As pessoas vêem aqui e que história é que levam do Cabo de São Vicente? O que é que entendem? Quer dizer, o que é que podem comprar realmente de genuíno em termos qualitativos? Como explorar isso em termos de merchandising?
Os italianos são muito bons nisso. De qualquer estatueta, mesmo que tenha uma história triste, eles transformam aquilo e têm lá milhões com a mão na maminha da Julieta ou do Romeu. Inventam. E eu não digo inventar no mau sentido, mas os tipos têm a noção da importância dos conteúdos. Porque um turista, se não vier só com a motivação de estar sete dias deitado numa praia e não querer saber de nada, vai querer descobrir alguma coisa. Vai querer saber que há mil e uma maneiras de fazer bacalhau. E quais são as plantas da região. E quais são os monumentos. E a história. Chegam à Fortaleza: “Muito bem, entramos lá dentro. E então? Isto serviu para quê? Foi o quê?” E essa parte dos conteúdos, eu acho que é o que dá substância a um produto. Nós aqui estamos a fazer isso muito apoiado no desporto e turismo de natureza. Ou seja, criando esta estância, que está aqui, é física. Não é uma questão de moda – é o produto, é o conteúdo do produto.
E serve como plataforma para conhecer a envolvência – a natureza, a fauna, a flora, a tradição.
Exactamente. E aí em termos de marketing é um pouco aquele conceito do slow travel, que é de facto as pessoas preferirem ter o contacto com as populações reais, comprar produtos locais, andar a pé ou de bicicleta em vez de andar de carro. Porque fechados num carro, e pensando nesse turista da fotografia, que cheiros é que ele sentiu quando fez a viagem de carro no Parque Natural? Contactou com quem? Talvez com um velhote, para pedir uma informação sobre se é para esquerda ou para a direita.
Podia dar-me uma pequena nota biográfica sobre o seu percurso de vida?
A minha formação é um curso de comunicação social, após o qual fiz uma especialização em publicidade. Trabalhei doze anos em publicidade, a desenvolver planeamento estratégico, a lançar produtos. Aquela vida é um bocadinho fazer com que pessoas comprem aquilo que não precisam, criar necessidades. E às vezes até eu ficava impressionado como era possível vender coisas que realmente eram tão más ou tão supérfluas e tão desinteressantes. Mas, de facto, com o estímulo certo, a pessoa infelizmente vai e compra e experimenta. E é ela própria que decide que precisa e que é importante e que tem de comprar – nem sequer é uma obrigatoriedade. E por isso fazia planeamento estratégico.
Há uma oportunidade gira: o meu primeiro cliente foi o Turismo de Portugal, que na altura era o AICEP, e desenvolvemos a estratégia que surgiu com o claim “Vá para fora cá dentro”, que é uma coisa que ainda hoje se usa. E tem 20 anos, isto foi em noventa e dois ou três.
E depois houve ali uma fase da minha vida, também se calhar por estar um bocadinho saturado daquele mundo desinteressante e de vender coisas que não eram precisas, em que achei que tinha de mudar. Sobretudo mudar para uma vida mais relaxada. Em termos de saúde, fui ao médico e ele disse-me que era melhor eu não continuar naquela vida porque inclusivamente fiz uns exames e davam uma trombose discreta. E pensei “não tenho idade para ter estas coisas”. Isso foi também um catalizador.
Eu já vinha aqui para estes sítios há mais tempo e este projecto surgiu um bocadinho fruto dessa vontade de mudar. Também sempre achei que se há uma coisa boa que temos no nosso país (leve a porrada que levar – e leva muita) em termos de indústria, é de facto a indústria do turismo. Porque o produto é este que está aqui: é sol em Janeiro, é o verde, é o mar. Isto basta não estragar, tipo “não façam nada”. Felizmente temos aqui um Parque Natural que tem travado muita coisa. E por isso achei sempre que o turismo era uma área a investir.
De repente, numa busca de casa de férias, foi assim que surgiu. São aquelas desculpas que nós arranjamos para estar distraídos da nossa vida, como comprar um carro novo é um programa para quatro meses. Compramos as revistas, arranjamos assim umas coisas ao lado para aliviar a tensão e o stress. E quando vi esta aldeia, à segunda vez que cá vim achei que podia ser interessante começar aqui com uma recuperação. Não imaginava isto tudo logo assim mas achei que era possível ir comprando algumas coisas. Depois juntei um grupo de amigos, éramos quatro sócios e tomámos o projecto a sério. E aqui estamos ainda.
E foi com o pessoal do surf e a pizzaria que vocês se tornaram conhecidos.
Sim, embora eu ache sempre uma coisa engraçada. Na altura da pizzaria, era a “Aldeia da Pizzaria”, não tinha nome. Nós já conseguimos mudar isso – hoje em dia quando dizemos Pedralva já há um grupo grande de pessoas que conhece o nome. Claro que quando não se conhece temos que recorrer à pizzaria: “Não sabes a aldeia que tem a pizzaria?””Ah, conheço perfeitamente.””Então pronto, é aí, é essa aldeia que é a Pedralva.” É um daqueles fenómenos de marketing.