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Um cidadão tem direito a viver com o mínimo

António Vieira da Silva
Um cidadão tem direito a viver com o mínimo

António Vieira da Silva / Fotografias: Uwe Heitkamp

O antigo Ministro do Trabalho (68) considera o rendimento básico incondicional (BGE) um tema excitante e desafiante, mas que é mais uma utopia do que uma realidade.  José António Vieira da Silva, defende um modelo social regido pelo direito ao trabalho, ao respetivo subsídio de reforma, e receia que a aplicação do modelo RBI, que tem sido mais veiculado, possa criar uma sociedade ‘bipolar’ e dividida em duas classes.
ECO123: No ano passado foi celebrado o centésimo aniversário sobre a criação deste Ministério. A implementação do RBI seria uma boa forma de assinalar essa efeméride?
J.A.V.S.: O Rendimento Básico Incondicional (RBI) é um rendimento de cidadania universal, ultrapassa a dimensão de um ministério. Há muitos anos que acompanho o debate sobre este tema, agora voltou à ribalta com a experiência finlandesa, havendo também várias opiniões que ajudaram a repor esta questão no espaço mediático. É uma mudança muito relevante de modelo de sociedade, é uma mudança no que respeita ao conceito de prestação social.

Considera esta nova possibilidade de rendimento mais próximo de uma realidade ou de uma utopia?
Neste momento acho que está mais próximo da utopia do que do projeto político. É uma ideia muito polémica em todas as famílias políticas, tem como obstáculo ser socialmente difícil de criar um consenso em torno dessa realidade. Do ponto de vista do modelo conceptual e de organização da sociedade não tenho nenhuma oposição de princípio, a não ser uma preocupação com esse risco de fratura de uma sociedade com duas classes. É um risco que existe. Uma parte que vive com o RBI e outra que trabalha, que retira rendimentos, e olha para quem vive do RBI como estando a viver às custas de quem trabalha. É o risco de criar uma sociedade a dois ritmos. Julgo que lhe posso chamar uma distopia, que é o contrário de uma utopia. O risco de uma sociedade, que a ficção já cenarizou, dos que estão ‘in’ e dos que estão ‘out’, em que os que estão ‘out’ são alimentados pelos que estão ‘in’, porque isso é essencial para a sua própria vida. Não quer dizer que, por vezes, na sociedade atual não aconteça isso, mas tenho esse receio.

E se lhe pedisse para criar um modelo ou um sistema financeiro que possibilitasse a aplicação do RBI numa sociedade?
O modelo ideal é o modelo que garante um patamar de rendimentos ao longo da vida das pessoas e cria um conjunto de estímulos para que elas possam atingir níveis mais elevados de bem-estar, através do seu esforço ou da sua criatividade.

E do ponto de vista orçamental ou sistema financeiro?
Antonio Vieire da SilvaÉ um repensar completo da nossa sociedade. Não afasto essa possibilidade, acho que não é impossível que tenhamos que vir a ser desafiados a tentar implementar um modelo desse género. Contudo, não gostava que fossemos obrigados a pensá-lo por via de uma sociedade que restringe o trabalho só para uns poucos. Gostava que lá chegássemos, e estamos no plano das utopias, com um esforço de equidade. Tenho muito medo de uma sociedade partida ao meio, em que há uns que trabalham, e recebem os seus rendimentos essencialmente do trabalho, e outros que recebem os seus rendimentos porque a sociedade considera que para poderem subsistir eles têm que ter acesso ao consumo.

Seria possível fazer uma experiência piloto em Portugal, talvez durante um ano, com algumas centenas de pessoas?
Não sei se temos condições para fazer essa experimentação mas penso que é possível fazê-lo. Teria que pensar melhor na sua exequibilidade no ponto de vista prático, temos que conhecer melhor a experiência finlandesa que está agora a nascer e penso que só irão tirar as primeiras ilações dentro de dois ou três anos.

Estaria a sociedade preparada para isso?
É necessário um trabalho de reflexão, de mobilização social, para que isso seja socialmente aceite. Parte da sociedade em que nós vivemos, particularmente em épocas de crise e de incerteza, tem horror a uma certa redistribuição. É por isso que hoje uma parte da Europa pensa que a outra parte da Europa vive à custa dela.

Mas quando um governo oferece 500 euros por mês por adulto, essa incerteza diminui para o cidadão…
Não tenho muitas dúvidas em relação a isso, agora o processo de transição para um cenário desses é muito complexo.

E simpatiza com o conceito de uma prestação universal?
Não posso deixar de simpatizar com esse conceito. O ponto positivo, indiscutivelmente, é a conceção de que um ser humano, um cidadão membro de uma comunidade, tem direito a viver com o mínimo, com uma dimensão básica que lhe assegure a cidadania. Uma sociedade que não reconhece esse direito é uma sociedade incompleta. Não julgo é que seja possível concretizar-se sem um consenso social muito alargado.

Que desvantagem vê na implementação desta proposta?
Reconheço os méritos desta iniciativa, é um caminho positivo, mas vejo que tem problemas. O meu problema não é o problema da crítica ao RBI poder ser um incentivo ao ócio. Eu acho que todos os que nascem têm direito a usufruir do que a natureza dá, mas não tenho a certeza se o desincentivo que possa constituir à inserção no trabalho organizado não possa vir a traduzir-se no empobrecimento da capacidade de criar riqueza. Se não, podemos estar a diminuir a capacidade de inovação quando se reduz o estímulo da remuneração salarial para se empenhar mais, para ser mais inventivo.

Antonio Vieire da Silva

Vendo por outro prisma, não poderá ser até mais libertador?
Há aqui elementos contraditórios. Há óbvias vantagens, como garantir que algum tipo de atividades humanas cerceadas pela sua dificuldade de serem remuneradas pelo sistema mercantil, de natureza artística ou criativa, possam passar a ter outro tipo de possibilidade de desenvolvimento. Mas aquele lado negativo que eu citei, também pode existir. Depois existe outra lógica, eu já vi pessoas do lado que nós podíamos chamar do capitalismo, a defenderem esta prestação universal como garantia de poder aquisitivo face a uma sociedade que pode evoluir para uma redução significativa da necessidade do trabalho humano.

Estamos a falar da substituição do homem pela máquina?
Em pleno séc. XXI, se os bens produzidos pelos robots não tiverem quem tenha capacidade de os adquirir, então toda a economia colapsa. É aí que as minhas dúvidas se adensam. Porque nós correríamos o sério risco de estar a segmentar a sociedade, isto em termos especulativos, entre aqueles que acedem ao bem-estar por via do trabalho remunerado e aqueles que acedem por via de um subsídio universal para serem consumidores. Tenho receio de caminharmos para uma sociedade bipolar, do ponto de vista do reconhecimento social.

Prevê-se no futuro uma diminuição dos postos de trabalho. Poderá o RBI manter ou aumentar o nível consumo?
Não tenho a certeza disso, essa profecia era feita há 200 anos. A sociedade humana, desde a primeira Revolução Industrial até este momento, tem conseguido criar mais necessidades sociais que exigem empregos do que aqueles que são destruídos. Não há muitas décadas, não havia a mobilidade que hoje existe, como o turismo, por exemplo, que veio criar milhões de postos de trabalho por todo o mundo em vários setores. O progresso técnico tem destruído a criação de alguns empregos e levado ao aparecimento de outros. Temos milhões de pessoas e pobreza extrema, mas também nunca tanta gente saiu da pobreza como nas últimas décadas. Vivemos numa sociedade complexa e contraditória.

No fundo, em que difere o RBI das outras prestações sociais?
As outras prestações sociais correspondem à cobertura de riscos ou eventualidades, tal como noutros países. Se a pessoa está doente, desempregada, se tem uma deficiência. Aqui é uma questão de dignidade. A conceção filosófica e doutrinária é diferente, este não é encarado como um instrumento de transição, como uma espécie de mal menor. O Rendimento Social de Inserção (RSI) é encarado como um instrumento para atingir a verdadeira inserção, que será a inserção pelo rendimento do trabalho. Recebem aquele apoio, mas a condição é que se inscrevam num processo de inserção social que lhes permita poder deixar de beneficiar deste tipo de apoio. Não é esse o conceito do rendimento básico de cidadania. Eu gostaria de pensar que a nossa sociedade garantia para todos o direito ao trabalho, não é um dever nem obrigação, mas um direito.

Há sempre a possibilidade de aguardar para ver os resultados da experiência finlandesa.
Pelo que percebi, na experiência finlandesa a ideia é que o benefício seja atribuído a desempregados. Mas se eles arranjarem trabalho, não lhes é retirado, ao contrário das prestações tradicionais substitutivas dos rendimentos do trabalho. Estamos num paradigma diferente e uma das coisas que eles vão ver é como é que as pessoas reagirão. Vão acomodar-se a esse nível de vida? Vão deixar de trabalhar? Vão continuar a procurar trabalho?

Em Portugal: 500 € a cada cidadão são 6 mil euros por ano; para 8 milhões de adultos, são 48 mil milhões de euros. Eliminando outras despesas, existe um plano do ministério nesse sentido?
Antonio Vieire da SilvaIsso implica uma rutura, tenho dúvidas que isso possa ser desenvolvido numa escala nacional e que não exija uma abordagem territorial mais ampla. O conjunto das prestações sociais que se paga em Portugal é qualquer coisa como pouco mais de 30 mil milhões de euros, corresponde a tudo, reformas, subsídio de desemprego, crianças. Depois ainda era preciso mais, porque as prestações sociais são mais de 500 euros. É um tema muito apaixonante e desafiante. A minha questão é o conceito de sociedade que achamos mais adequado. A Finlândia está a aplicar isto a 2 mil ou 3 mil pessoas, uma pequena amostra. Estamos a falar de experiências. É interessante ver os resultados e ver como as pessoas reagem, mas tal deve ser acompanhado de uma reflexão social em termos de valores. Do ponto de vista conceptual, não sou um adversário desta ideia, não sou é um militante dela porque tenho ainda algumas dúvidas e sempre tive. Quando nós lançámos um rendimento básico na perspetiva do combate à pobreza extrema, pensámos também naquilo que a sociedade é capaz de aceitar e suportar.

Com a implementação do RBI existiria a possibilidade de abolir as reformas.
Nenhuma política de rendimento básico pode substituir esse tipo de distribuição (reforma). Não vejo um RBI como substituto de todas as prestações sociais, senão aí é que se está a introduzir mesmo um segundo desincentivo ao trabalho. A ideia básica é que a pessoa recebe 500 euros mas se quiser trabalhar, como engenheiro ou agricultor, vai receber mais e dá-lhe direito a um rendimento imediato, mas deve dar-lhe direito também a um rendimento futuro proporcional.

Mas o trabalhador seria valorizado enquanto estivesse no ativo…
O rendimento que a pessoa tem hoje não é apenas o seu salário líquido. A pessoa está a receber do seu trabalho, não só o que leva para casa, mas também aquilo que lhe dá direito a uma prestação futura e que tem uma certa proporção, com o que recebe e desconta. A remuneração da pessoa é também composta pelas contribuições que está a descontar para a Segurança Social, para que no futuro tenha um rendimento. Acho que esse é um fator essencial para que os equilíbrios sociais funcionem e para que haja dinâmicas de mudança. Nenhuma sociedade progride sem assimetrias. As desigualdades são outra coisa, mas se eu receber mais porque trabalho mais, porque sou mais criativo ou me empenho mais, vou ter mais rendimento. Uma sociedade que veja esse estímulo cortado é uma sociedade que está morta do ponto de vista da inovação.

Uma das propostas do RBI diz que, se trabalhar mais, vai receber mais mantendo o subsídio de 500 euros, mesmo depois de deixar de trabalhar.
A reforma depende do que se recebe enquanto se trabalha, está a receber hoje e a criar condições para receber no futuro. Imagine que a pessoa recebe o rendimento de 500 euros, mais dois mil euros do seu trabalho. Quando deixa de trabalhar recebe só 500 euros? Isso não é possível. Vamos imaginar um mundo onde existe um RBI. Quando a pessoa trabalha para ter mais rendimento, é essencial que esse trabalho permita, no imediato e em termos diferidos, ter um nível mais elevado de rendimento. As sociedades organizam-se de forma diferente para que isso aconteça, é um seguro social.

E o fim das reformas?
Num plano de especulação, se é assegurado esse rendimento básico também na velhice, o esforço que a pessoa tem que fazer para que ele seja mais elevado torna-se menor. Esse já está garantido, não está a somar mas sim a diferenciar. Imagina uma sociedade em que enquanto a pessoa é ativa recebe e depois disso só recebe o rendimento de cidadania? Esse é um sistema onde muita gente não gostaria de viver.

São muitos os pensionistas que recebem reformas inferiores a 400 ou 300 euros. Não seria o RBI uma melhoria para esses casos?
Aí estamos de acordo e foi por isso que criámos o ‘complemento solidário’, para que nenhum idoso tenha que viver com menos do que é o limiar da pobreza, que em Portugal são 420 euros. É a perspetiva de assegurar um rendimento básico acima dos 200 ou 300 euros. O que nós temos são pensões básicas e depois, para aqueles que não têm mais rendimentos, um diferencial de rendimento. É uma filosofia que tem inspiração nas preocupações do RBI mas segue caminhos um pouco diferentes.

Qual é o caminho então a seguir?
Temos que lutar por um mundo mais digno e justo, os caminhos não são sempre lineares. Á escala global o que é que isto quer dizer, que há regiões do mundo que não podem fazer mais nada senão receber o rendimento básico? Porque têm menos competências ou estão menos preparadas ou isto é uma coisa só para os países mais ricos? Não pode ser. Se houvesse um mundo organizado e justo será que 90% dos africanos iria receber o RBI? Será que o mundo era mais justo se todos tivessem direito a essa remuneração base? Corresponde a uma visão antropológica adequada. Na sociedade humana, quando se organizava com muito menos estratificação, todos tinham RBI, que era aquilo que a natureza lhes fornecia. Depois foi a estratificação, as apropriações, os grupos sociais que se criaram afastaram algum desse rendimento básico. Todos nascemos com um RBI, era plantar à mão e colher a fruta.

Muito obrigado.

Esta entrevista é da Editon 17, Primavera de 2017 e ainda é actual.

About the author

Alexandre Moura (44). É licenciado em Ciências da Comunicação Jornalismo e nasceu em Faro. É jornalista profissional desde o ano de 2000 para órgãos nacionais e regionais de imprensa, televisão e rádio, nas áreas de atualidade, cultura, desporto e informação geral.

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