Sendo a LX Factory um caso pioneiro na reabilitação urbana em Lisboa, a ECO123 entrevistou o arquitecto Manuel Salgado. Vereador no actual executivo da Câmara Municipal de Lisboa, tem a seu cargo pelouros como o de Planeamento e Política de Solos, de Licenciamento Urbanístico, da Reabilitação Urbana e de Obras Municipais.
Professor Catedrático Convidado de Projecto do curso de Arquitectura do Instituto Superior Técnico desde 2002, desenvolveu projectos de arquitectura e urbanismo de escalas muito variadas, como o Centro Cultural de Belém, o Projecto dos Espaços Públicos da EXPO’98 ou o Projecto Urbano de Romanina e o Plano de Pormenor de Bastia, em Itália, entre muitos outros.
1. No respeitante à reabilitação urbana, a LX Factory é caso único em Lisboa? Qual é a sua opinião sobre o projecto?
Hoje já não é, foi caso único quando foi lançado. Felizmente hoje começam a despontar outras iniciativas do mesmo tipo, com características diferentes mas que no fundo consistem em aproveitar espaços existentes mudando os seus usos e favorecendo a instalação de actividades na área das indústrias criativas, do comércio especializado e da restauração.
Há duas situações que são interessantes: uma é o antigo edifício dos correios, na Praça D. Luís, que tem um projecto aprovado para um edifico de habitação e que os promotores entenderam que temporariamente irão utilizar para um espaço de co-working. Uma outra situação interessante é um centro comercial localizado junto às Amoreiras, na Rua D. João V, que neste momento é também um projecto ligado às indústrias criativas mas na área da publicidade, com um conjunto de actividades complementares.
2. A LX Factory representa criação de vários postos de trabalho, reabilitação urbana, promoção histórica, turística e cultural. Dado que existem vários edifícios históricos desocupados na cidade, desde palácios até antigas fábricas. Porque não existem mais projectos assim, particularmente sob a alçada da autarquia?
Recentemente, por iniciativa da própria câmara, estão a ser desenvolvidos programas que são de algum modo parecidos. Uma Start-Up na baixa de Lisboa, cuja ampliação está agora a ser estudada. Um outro no Convento do Desterro, também para a actividades nas áreas criativas, numa parceria com a empresa estatal Estamo. E um terceiro que é um laboratório de prototipagem instalado no mercado do Forno do Tijolo. Ainda há uma outra iniciativa, também recente, na Avenida das Forças Armadas, que é uma parceria entre o ISCTE (Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa), a EPUL (Empresa Pública de Urbanização de Lisboa) e a Câmara de Lisboa. Tudo isto são iniciativas que começam a despontar em Lisboa, das quais a LX Factory foi a percursora, e que têm a característica comum de ser uma economia emergente que aproveita os espaços existentes e, que através das sinergias criadas pelos vários actores geram ambientes particularmente propícios à criação.
3. Em muitas situações, a principal razão que impede as pessoas de habitar no centro de Lisboa é financeira. Como forma de combater a desertificação desta área, é possível à autarquia ter uma acção sensibilizadora ou atuação reguladora sobre os preços praticados nos edifícios reabilitados, quer na venda, quer no aluguer?
A capacidade dos municípios intervirem no preço final do produto é muito limitada. O mercado de arrendamento está completamente liberalizado, tanto o comercial, como o habitacional. E com a excepção de pessoas com idade superior a 65 anos, e que comprovem que têm recursos muito escassos, o mercado funciona livremente.
Os municípios só podem intervir se tiverem iniciativa própria – edifícios de construção municipal. Temos por exemplo, edifícios em bairros que foram construídos pelo município com rendas sociais, temos um programa de renda convencionada (ligeiramente mais alta que a social) e estamos a procurar estabelecer mecanismos em que, a troco de determinados incentivos que o município dá aos particulares lhes impõe como condição colocarem as habitações no mercado de arrendamento com rendas que sejam inferiores ao valor de mercado. Estes mecanismos não são fáceis de implementar, estamos a procurar através de um regulamento aprovado há meses atrás, que nas novas iniciativas exista de facto essa possibilidade. Isto seria mais fácil, se por exemplo, fosse possível através de contrapartidas de financiamento, mas essa faculdade não existe, pois o município não tem capacidade de emprestar dinheiro aos privados e não consegue estabelecer parceiras com a banca para que financie, porque a banca neste momento é muito restritiva quanto aos financiamentos, portanto a margem que existe aqui é reduzidíssima.
4. Até que ponto a recuperação urbana é uma prioridade para a autarquia? Quais são as principais medidas tomadas neste sentido?
O que a Câmara tem definido como prioridade das prioridades é a reabilitação urbana. Essa reabilitação urbana no fundo incide sobre três vectores: por um lado a reabilitação dos equipamentos municipais, se não a for a Camara a reabilitar ninguém os reabilita – escolas, cresces, bibliotecas; a reabilitação do espaço público – ruas, praças, jardins – tem sido feita duma forma sistemática; e a reabilitação dos edifícios municipais. Para além disso, como a maior parte dos edifícios que existem em Lisboa são privados e não municipais, o que a Câmara tem feito é adoptar um conjunto de medidas que incentivem os particulares a reabilitar. Isso passa por reduzir a zero todas as taxas municipais, ao contrário das obras novas em que estas são pesadas, passa por tomar medidas em que quem reabilite beneficie de incentivos fiscais, e há incentivos fiscais muito significativos – sendo o mais relevante a isenção do IMI durante 5 anos, prolongável por mais 5 e a redução do IVA de 23% para 6% – isto são benefícios muito significativos que existem para a reabilitação e que resultam duma acção voluntarista do município de Lisboa.
5. Na maioria dos casos, a recuperação urbana parece passar pela construção de projectos novos e não pela reabilitação. Não estará este facto a contribuir para a extinção da história da cidade e existem mecanismos por parte da autarquia para identificar edifícios que sejam relevantes em termos de património e assegurar a sua preservação?
Falso. 95% dos edifícios que entram na Camara são de reabilitação, e desses 95% o número daqueles que corresponde a manter a fachada e demolir o interior e reconstruí-lo é residual, não chega a 10%. A grande maioria são edifícios reabilitados.
6. Apesar do custo do estacionamento, os automóveis ocupam cada vez mais o espaço público, além de serem fonte de poluição e insegurança. De que formas tenciona a C.M. resolver esse problema?
O problema é complexo mas tem vindo a ser abordado duma forma objectiva e completa. Em Lisboa sofremos as consequências da forma como se desenvolveu a Área Metropolitana de Lisboa (região com 18 municípios da Grande Lisboa e da Península de Setúbal) que assentou numa dispersão por um território muito grande, e essa dispersão levou ao fomento da utilização do automóvel, do transporte individual. Porque enquanto essa expansão se localizou ao longo das linhas de comboio, nos aglomerados servidos por linhas de comboio, seja da linha de Sintra, Cascais ou do Norte, as pessoas não tinham que recorrer tanto ao automóvel. Quanto tudo isto se dispersa, e o que se densifica é a rede rodoviária é evidente que uma pessoa entre escolher sair de casa de carro até à estação e vir (de carro) para Lisboa não vem de comboio.
E o que acontece é que hoje, em cada 3 carros que circulam em Lisboa, 2 vem de fora de Lisboa. Lisboa tem 545 000 habitantes e entram outros tantos todos os dias em Lisboa e à volta de 370 000 carros por dia entram em Lisboa, quando só estão registados 166 000. Portanto aquilo que é importante fazer é começar a reduzir a necessidade dos carros entrarem em Lisboa. Como é que isto é feito? A medida mais importante que tomámos é controlar o estacionamento. Se não houver oferta de estacionamento, quem vem de fora não tem onde estacionar, não vem. Mas ao mesmo tempo tenho que aumentar a oferta de estacionamento para os residentes. Se sou residente e moro numa rua em que tenho de tirar o carro de manhã, porque se não vem a polícia e multa-me, se tiver um local onde possa estacionar 24h por dia mais facilmente utilizo o transporte público. Portanto, o controlo de estacionamento é uma medida absolutamente essencial.
A segunda é a localização de actividades na cidade. Se localizar o emprego junto dos nós da rede de transportes públicos pesados – por exemplo aqui em Entrecampos, temos metro, comboio que vem da linha de Sintra, da linha do Norte e da Ponte e autocarros, portanto é uma zona particularmente bem servida de transportes, deve procurar localizar-se aqui o máximo de emprego. Quem diz aqui diz na Praça de Espanha, diz em Alcântara, diz em Sete Rios, diz no Cais do Sodré, diz na Expo. Chamamos a isto o colar das centralidades, são uma série de zonas onde favorecemos a instalação de emprego, são aquelas que tem as densidades mais altas previstas no plano director e ao mesmo tempo são aquelas onde há um tecto ao número de lugares de estacionamento.
Não me interessa que uma empresa se instale aqui e que traga milhares de carros, quanto mais lugares de estacionamento tiver mais carros tem. O que pretendo é que nestas zonas que são muito bem servidas de transportes públicos, se reduza a oferta de estacionamento automóvel, que as pessoas venham de transporte público e não de automóvel.
Isto é um conjunto de medidas, e depois há um outro conjunto de medidas que estão a ser tomadas que passam por favorecer a mobilidade dentro da cidade, utilizando os chamados modos suaves como a bicicleta e andar a pé, fomentar o uso do transporte público e de alguma forma criar menos condições para a necessidade de se recorrer ao automóvel privado. Há umas fotografias muito interessantes que comparam o espaço ocupado por um autocarro com o espaço ocupado por automóveis individuais transferindo cada um dos passageiros para o seu automóvel e percebe-se de facto o que isto significa em termos de espaço ocupado.
7. O problema parece ser que os transportes não funcionam como deveriam, particularmente em termos de horários.
É uma pescadinha de rabo na boca. Os transportes funcionam tão melhor quanto maior procura tiverem. Se tiverem pouca procura funcionam mal, portanto é preciso aumentar a procura do transporte, para além de obviamente questões conjunturais como as que existem neste momento, resultado duma política adoptada nos últimos dois anos, de aumento significativo dos custos de transportes estão a colocar muita gente fora do mercado dos transportes. Além da redução do número de carreiras, das áreas servidas, e portanto é verdade que os transportes públicos funcionam hoje muito pior do que há uns anos atrás e é urgente inverter esta situação.
8. Considera que vedar áreas de Lisboa, como a baixa da cidade, à circulação automóvel poderia contribuir para revitalizar os pequenos negócios, impulsionar a criação de novos e humanizar a cidade?
Eu acho que sim e que tem de ser feito com cuidado, porque se for entrevistar os comerciantes, a maior parte acha que não. Acham exactamente o contrário, que é preciso ter carros, há mesmo aquela teoria americana “no car no business”. Pessoalmente estou convencido do contrário. Por exemplo, a Rua Augusta vende mais do que a Rua da Prata, a Rua Augusta não tem carros e a Rua da Prata tem, e acho que visitando as cidades mais evoluídas do mundo efectivamente o que se vê é que cada vez há mais áreas pedonais, cada vez há mais restrições na circulação automóvel e cada vez há mais aposta nos meios suaves. Curiosamente Nova Iorque reduziu significativamente o número de faixas de rodagem, tem pistas cicláveis por todo o lado, alargou os passeios e portanto criou condições completamente diferentes daquelas que tinha há 10 anos atrás. A política de defesa do ambiente e melhoria da qualidade urbana em Nova Iorque veio exactamente neste sentido.
9. Existem cada vez mais utilizadores de bicicleta na capital. Acha que Lisboa é ou não uma cidade ciclável? Considera haver impedimentos a uma maior utilização de meios de transporte alternativos na cidade?
Há sempre aquele argumento de que Lisboa tem uma topografia muito acidentada e que isso afasta os ciclistas. O que temos verificado é que nem toda a Lisboa é acidentada – dois terços da cidade, o que está aqui à volta (Entrecampos), o chamado planalto é praticamente plano, ou seja, do Saldanha para cá é tudo relativamente plano e a prova está em que cada vez há mais pessoas a andar de bicicleta. Além de que as próprias bicicletas já não são o que eram há 60 anos atrás, eram pesadas e difíceis de utilizar. Hoje em dia até há bicicletas que tem motor eléctrico o que reduz o esforço necessário para circular. Isto para dizer que estamos numa situação em que cada vez há mais procura para a bicicleta, e para outros meios, para a mobilidade eléctrica, para os híbridos, há uma alteração muito significativa para os modos de locomoção nas cidades e isso é muito vantajoso para a melhoria da qualidade do ar, emissão do ruído e maior conforto e segurança das pessoas.
10. Hoje em dia, as acções das pessoas são cada vez mais orientadas para o consumo. Lisboa tem locais suficientes onde as pessoas possam simplesmente estar, sem ter de “fazer” algo?
Cada vez tem mais, cada vez tem mais jardins, cada vez tem mais miradouros, tem havido um esforço grande de melhoria de espaço público. É evidente que se uma pessoa quiser ir para um miradouro beber uma cerveja pode ir, mas não é obrigada. Pode sentar-se a ver a vista, desfrutar do ambiente sem que seja obrigada a consumir. O mesmo se passa nos jardins, é evidente que quem se senta numa esplanada tem de consumir, mas para além dessas situações tem aumentado muito os espaços que são de utilização pública na cidade de Lisboa.
11. Na sua opinião, o que faz falta a Lisboa?
Falta imensa coisa, faltam muitas muitas coisas. Neste momento temos um projecto para Lisboa que é muito importante, portanto as decisões já não são tomadas casuisticamente. Temos um projecto que está perfeitamente delineado, foi consagrado no plano director, na carta estratégica, portanto sabemos o que queremos. E porque sabemos o que queremos, falta fazer muita coisa. Falta ainda muita obra de reabilitação da zona ribeirinha para devolver o rio à cidade e aos lisboetas, falta requalificar todo o eixo central de Lisboa desde o Marquês de Pombal para norte em direcção à alta de Lisboa, falta requalificar a Almirante Reis, falta intervir nos bairros todos da cidade com espaços que sejam confortáveis onde as pessoas se reúnam, falta reabilitar e investir ao nível dos equipamentos públicos e falta um enorme investimento que o município sozinho não pode assegurar de forma alguma que é a reabilitação do património edificado, um investimento muito muito relevante.