Sábado, 9 de Maio de 2020
Uma reflexão de Dina Adão
São nove da manhã. Em frente ao computador, impecavelmente maquilhada, e vestida como se fosse sair, a minha filha fixa o monitor. Está com cara de poucos amigos e solta alguns impropérios. Os livros estão espalhados pelo chão e ela fixa o relógio, visivelmente exasperada. O router não está a responder. Vivemos num local metido ao campo, onde, por cabo, chega apenas uma companhia de comunicações e multimédia: a Meo. O serviço, que nunca foi bom, cobrindo razoavelmente metade da casa, agora, anda pelas ruas da amargura. Em teletrabalho, partilho a sala com a escola à distância da minha educanda, das 9 às 16 horas. Ao longo do dia, os nossos rostos experimentam esgares cruzados, potenciados pela lentidão dos processadores préhistóricos dos nossos computadores. É lamentável. Estou impedida de melhorar a situação, uma vez que me vejo impedida de instalar parabólicas no condomínio. Resta-nos, por isso, suspirar, desligar o computador, e … tentar de novo.
Todos os dias tento criar conteúdos positivos, capazes de recordar a comunidade com a qual trabalho que a vida é o que está cá dentro e que, mesmo em períodos tempestuosos, é fundamental criar para sentir que estamos vivos. Ao telefone com uma amiga, solto um desabafo: “eu, que prezo tanto contar histórias, neste momento, parece que se me falta a força anímica.” “Talvez esta seja uma época de não-histórias. Porque não contas uma não-história?”, desafia. Fico a pensar nisto. Muitas horas.
Conto histórias com a boca, com os olhos, com o corpo, pelos dedos… Como arquivista, conto histórias; como bibliotecária, conto histórias; e conto histórias também como jornalista, como fiel amante da fotografia, e até mesmo quando recolho lixo na praia. Em alguns meios tenho mesmo uma alcunha que muito prezo: “costureira de palavras”.
Paro para pensar na importância que as histórias têm na minha vida. Sei que um dia, quando olhar para trás, vou poder dizer que houve um tempo em que aprendi a render-me ao tempo, um tempo em que senti o tempo a correr mais devagar… Um tempo em que consegui olhar para o móvel encontrado à beira do lixo – e ponderar dar-lhe uma nova vida.
Vou lembrar-me que foi nessa altura que compreendi (porque senti, pela primeira vez), o poema do brilhante Fernando Pessoa: “Ai que prazer/ Não cumprir um dever/ Ter um livro para ler/ E não fazer!” É um poema magnífico, e fico algo surpreendida por ter chegado até mim de forma tão impactante, só agora. O seu título, não é um acaso. Chama-se: Liberdade.
Por isso, quando eu contar esta história, um dia, vou esquecer-me de mencionar palavras como “confinamento”, “distância social”, “Covid-19” ou “estado de emergência”. Como qualquer boa história, vou trajá-la de nova roupagem. Vou lembrar as muitas vezes que me senti uma mulher de sete instrumentos, as outras tantas que me obriguei a relativizar problemas, sentindo o outro com uma imensa ternura, e outras em que senti a necessidade de dar uma nova vida às coisas.
A propósito, amanhã passo pela Drogaria. Vou comprar lixa e uma pequena latinha de tinta branca para madeira e vou contar uma nova história ao meu quarto. Ou deverei dizer: uma não-história de uma velha-nova mesa-de-cabeceira?