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Nº 35 – Os primeiros 5.000 anos de dívidas

Sábado, 23 de Maio de 2020

de Uwe Heitkamp

Numa altura em que as cidades mais povoadas estão lentamente a regressar à normalidade da vida pública, aqui, no interior, estamos a refletir sobre os produtos essenciais para sobreviver às crises: o bom pão, o nosso próprio mel, o azeite local, a farinha de alfarroba, a alcagoita de que se faz a manteiga de amendoim, os produtos agrícolas, os alimentos frescos, como o queijo de cabra e a flor de sal, todos eles produzidos localmente e indispensáveis para um bom pequeno-almoço, almoço ou jantar.

Antes do almoço colho algumas das folhas exteriores da rúcula e da endívia da horta e lavo-as na cozinha. Depois, apanho os primeiros pequenos tomates cereja do canteiro atrás da cozinha, junto algumas ervas do canteiro já aqui ao lado e começo a preparar o molho. Azeite caseiro, nozes, maçãs, nêsperas, laranjas e limões, batatas, plantas selvagens. Fazemos o nosso próprio iogurte e kefir. Os ovos são das nossas amigas galinhas.

Já vivi tempo suficiente na cidade na esperança de descobrir algo a que algumas pessoas chamam de cultura. É o que, para alguns, marca a diferença entre a vida na cidade e no campo: a oferta cultural. Festivais de cinema, grandes jogos de futebol, bom teatro, música ao vivo, exposições de arte, pubs e uma vasta gama de eventos. Durante vários meses, sobrevivi sem eles. Agora, neste momento, em que tudo talvez tenda a regressar à forma de antes, com o ruído e as partículas nocivas de milhões de automóveis, e o fedor de milhares de contentores de lixo, a que chamamos eufemisticamente ECO-Pontos, estou cada vez mais consciente de quão hostis atualmente são as nossas cidades e de quão longe já nos afastámos de uma vida saudável. E percebo como a vida na aldeia e a vida rural são simpáticas. A taxa de infeção de uma pandemia mantêm-se muito plana no campo.

A vida saudável começa pela mente, na alma e no coração de cada pessoa. Quer vivamos na cidade ou no campo, cada um pode decidir por si. Lembro-me com alegria de uma imagem que ficou retida na minha memória: o meu filho a pegar na bicicleta e ir com o seu amigo Ricardo até um lago para experimentar as suas canas de pesca artesanais. Levavam calção de banho e, com os seus dez anos de idade, passaram as férias a brincar na natureza. Descobriram cobras e escorpiões, rastos de javalis e águias em voo circular nos céus, e aprenderam a movimentar-se e a respeitar a natureza. Os rouxinóis, os cucos, os pica-paus e os pardais, as andorinhas e os melros, as pombas e os tordos faziam concertos na nossa floresta diversificada, concertos que não ficam atrás dos de qualquer orquestra filarmónica. Mas desde que temos o programa 365 Algarve, também na nossa aldeia já não nos falta a cultura dos centros urbanos.

A paz e o sossego que os lugares tranquilos e secretos da floresta me oferecem são a base ideal para estudar novas publicações, ler um bom livro, para todo o meu trabalho como jornalista e agricultor. De manhã cedo rego a horta, o feijão, a abóbora e o melão, e à noite vou ver as batatas, as cebolas e o tomate, enquanto vejo as sementes desenvolverem-se, porque o mais importante é a aprendizagem que o agricultor obtém com cada uma das suas safras. Aprende que deve conservar pelo menos 10% da sua colheita, para guardar reservas para o próximo ano. Não se aprende isto na cidade, nem onde a vida nos afastou do meio natural. Ali, aprende-se a viver da Segurança Social e endividado. Nesse sentido, hoje vou reler um livro um pouco mais antigo de David Graeber, mas que permanecerá sempre atual. Conta a história dos primeiros 5.000 anos do homo sapiens, a partir do momento que existem o dinheiro e as dívidas; conta também a vida na velha Babilónia: do êxodo rural e da armadilha do endividamento. Como um thriller, conta a história da humanidade que, numa atividade sem sentido, se afasta cada vez mais, em vez de procurar uma atividade com a qual se identifique. Com esse livro, retorno ao presente.

Uwe Heitkamp (60)

jornalista de televisão formado, autor de livros e botânico por hobby, pai de dois filhos adultos, conhece Portugal há 30 anos, fundador da ECO123.

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