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DIA 1 – A sede é surpreendentemente grande

Caminhando pelo Sul
DIA 1 – A sede é surpreendentemente grande

Neste ano quente e seco em que o verão parece não querer chegar ao fim, saio porta fora, num domingo de outubro, mochila às costas. Tranco a porta e sigo com o meu cão a pé pelo campo fora em direção a Este. Tenho uma semana reservada só para mim: uma semana sem computador e dias sem internet. Pretendia seguir o trilho que parte detrás da minha casa diretamente para a natureza, ou do que restou dela após o grande incêndio de 2018.

Esse trilho passa por uma cascata escondida que poucos conhecem, e que derrama o seu líquido de uma cascata de nove metros de altura para uma piscina natural como se fosse um duche. Ali, podemos nadar em privacidade e sentir-nos como Adão e Eva. Será que esse ribeiro ainda corre? O trilho cruza os vales, aqui chamados de barrancos, subindo depois pela montanha. Um sobe e desce em que só os conhecedores das redondezas não perdem a orientação. Os barrancos percorrem a geografia de Norte a Sul, e é neles que os ribeiros de montanha correm em direção ao vale. Mas, como iniciei esta caminhada num domingo de outono, também lá estão os caçadores – é um dos dias em que a caça é permitida por Lei. Ouvem-se os tiros desde o raiar do sol: pam pam! É como o aproximar de uma frente de guerra. Por isso, decido evitar o risco de eu, ou o meu cão, levarmos uma chumbada e sigo pela estrada das Caldas até à Fornalha. São seis quilómetros.

Após um curto período de tempo, damos com as cabras do nosso vizinho Zé Eduardo. Este vem ao nosso encontro com o seu rebanho de cabras de várias raças e alguns cães. Também segue pela estrada alcatroada. Os seus animais pastam alegremente, apreciando as ervas junto a ambos os lados da estrada. Carros? Nem vê-los. É um troço sem vivalma que segue de Oeste para Este, passando pelas últimas casas. Por vezes, sinto a necessidade de me certificar que a Natureza à minha volta ainda existe, de facto, um espaço que eu consigo sentir e do qual faço parte.

Um jornalista deve sair do seu escritório sempre que possível, escapando ao mundo virtual para mergulhar na realidade. Este tem sido o meu lema há muitas décadas de profissão. É também por isso que, no meu tempo livre, gosto de pôr as mãos na terra para plantar as minhas próprias batatas e legumes, praticando uma espécie de permacultura. Quero ser capaz de saber fazer mais do que apenas escrever histórias.

DIA 1

A sede é surpreendentemente grande

As cabras dirigem-se diretamente ao nosso encontro. Max, o meu cão, companheiro e grande amigo desde há seis anos a esta parte está familiarizado com a situação. Com um gesto da mão, peço-lhe que se sente para que não espante o pequeno rebanho. Ficamos os dois bem quietos à beira do caminho enquanto aguardamos pacientemente que as cabras decidam o seu caminho. Algumas voltam para trás, outras desviam-se, e algumas mantêm-se na nossa direção, cheias de curiosidade. O rebanho parece estar a separar-se. O pastor está à sombra de um sobreiro a terminar uma chamada. Mas, mesmo sendo um pastor em part-time, está atento aos seus animais. Dá ordens em voz alta para motivá-los a passar por nós e as cabras retomam o rumo, passando por nós e seguindo o seu caminho. Os cães ajudam a guardar o rebanho. Nós também seguimos.

Com aquela curiosidade de vizinho, o pastor pergunta “então, para onde vai?”. Respondo que a meta da nossa caminhada de vários dias é a fronteira espanhola, que fica a pouco mais de 180 km. Pretendemos andar a pé pelo campo durante alguns dias para verificar, medir e fotografar os efeitos da seca, e para juntar bolotas e outras sementes que possam ser plantadas para dar origem a novas árvores na nossa floresta, que tanto sofreu com o incêndio. O outono é a estação perfeita para isso. Em casa, tenho um pequeno viveiro onde já muitas jovens árvores se encontram em vasos para serem plantadas no nosso Jardim Botânico Florestal – para substituir algumas das grandes e anciãs árvores queimadas no incêndio. Algumas, conseguimos salvar.

As terras agora estão limpas e podemos começar a plantar jovens árvores. Voltar a ter variedade genética só é possível se juntarmos sementes e bolotas de muitas espécies de outras regiões para poderem crescer no local. Depois, voltam os pássaros, garantidos que estão os seus espaços de nidificação e refúgios seguros, e, com eles, os outros animais. Uma dessas espécies que aqui nidifica é a águia-de-Bonelli, uma ave de rapina protegida. Isto, se finalmente voltar chover! Em vez disso, o Sol brilha, tornando os dias quentes e secos: está simplesmente quente demais para esta época. As árvores só se podem plantar na terra bem húmida para que as raízes se possam estabelecer e absorver os alimentos e os minerais dissolvidos na humidade. A altura para o fazer é nos meses de dezembro e janeiro.

Até ao início do próximo verão, as jovens árvores recentemente plantadas têm que ter tido tempo para desenvolver as suas raízes na terra, para que, mesmo durante os meses secos do verão, ainda consigam encontrar terra húmida nas camadas mais profundas. Ou então têm que ser regadas durante o verão, o que implica outros riscos. Agora estamos em finais de outubro e a época das chuvas – como todos os anos – já deveria ter começado há muito. Teima em não chover e, por isso, já contamos seis meses seguidos sem chuva desde maio. Os verões estão a ficar mais longos e os invernos mais curtos. O vizinho, que pastoreia o seu rebanho, deseja-nos tudo de bom e diz que também gostaria de nos acompanhar. Porém, tem muitas outras coisas para fazer, trabalho e família, o tempo é escasso.

Continuamos o nosso caminho com vista sobre as colinas mais baixas do Algarve. A vista panorâmica sob o Atlântico proporciona um cenário único que se estende ao longo do horizonte. Até ao mar ainda são cinco a seis horas, sempre a descer. Silves, o nosso destino do primeiro dia, fica escondida atrás das colinas entrelaçadas frente ao mar. Fica no interior. Ao caminhar normalmente, as pessoas deslocam-se com uma velocidade média de três quilómetros por hora. Estamos numa região que foi declarada pela UE como pertencente à Rede Natura 2000.

Monocultura de eucalipto em área de Rede Natura 2000

De ambos os lados do caminho, e pela serra acima, há muitas áreas naturais protegidas. Portanto, 80% da Serra de Monchique passou a fazer parte da Rede Natura 2000 e não deveria ter monoculturas de eucalipto ou espécies invasivas como as acácias. Quem aprovou e quem plantou as monoculturas industriais nestes terrenos com socalcos? Só se vê eucalipto por toda a parte. É a única espécie aqui, uma espécie que é abatida após oito ou nove anos de crescimento para fazer papel, mas que também pode ter um efeito devastador em caso de incêndio. Quando as manchas de eucalipto e de acácias ardem, as árvores renascem aos milhares no ano seguinte porque as suas sementes, resistentes ao fogo, voam por centenas de quilómetros, acabando por afastar as outras espécies. É assim que se multiplicam as espécies invasivas.

Screenshot: https://natura2000.eea.europa.eu (Monchique PTCON0037)

Leio que “a Rede Natura 2000 abrange 18% da área terrestre da União Europeia e mais de 8% da área marítima. É a maior rede de área protegida coordenada do mundo. Garante proteção às espécies mais valiosas e ameaçadas da Europa e aos seus habitats”. O que se passa então aqui em Monchique? A indústria da pasta do papel criou, em conjunto com as instituições e o Governo, um regime de exceção com o SITECODE PTCON0037 para, pela calada, e durante muitos anos, poder implementar a silvicultura industrial destinada à pasta de papel. A floresta passou a ser uma fonte de recursos?

Depois de abatidos os eucaliptos, apenas algumas semanas depois, já as das raízes voltam a brotar novos rebentos, e depois novos troncos, com ramos e folhas. O eucalipto é imparável, a não ser que se arranque a planta pela raiz, como se faz com as ervas daninhas. O eucalipto é a árvore mais resistente de todas as espécies presentes na Europa. É a que cresce mais depressa, cujas raízes chegam até ao lençol freático, secando as terras ao seu redor. As árvores autóctones não conseguem competir, dada a sua lentidão. Tive essa experiência diária durante muitos anos. Planta-se um eucalipto e tudo à sua volta acaba por secar depois de alguns anos. As outras espécies de árvore não crescem onde já cresceu o eucalipto, a não ser a acácia-mimosa, outra das invasoras oriunda de África. Ela é igualmente perigosa na paisagem semiárida do Algarve onde só chove no inverno enquanto a terra se mantém seca ao longo dos meses de verão. A água das chuvas de inverno têm que chegar para o verão inteiro.

Este é o motivo pelo qual, antigamente, as pessoas guardavam a água do inverno em cisternas, criando reservas para o verão. Mas as acácias têm raízes pivotantes e fasciculadas e vão buscar água a todas as camadas do solo, enquanto as jovens árvores autóctones, como sobreiros, castanheiros e pinheiros-mansos só lá chegam após muitos anos de lento crescimento. A acácias conseguem alcançar o lençol freático para o seu próprio uso a partir de profundidades insondáveis do solo. Os gigantes da indústria, como a Navigator e a Altri estão a cobrir o território português de eucaliptos, por ser este a principal matéria para a produção de papel. Mais de um milhão de hectares em Portugal já foram transformados desta forma pela indústria de papel, abatendo espécies autóctones para plantar eucalipto. Mas o eucalipto tem uma outra característica que as árvores nativas não têm: agrava os incêndios por conter óleos voláteis que ardem com a mesma intensidade que a gasolina.

Acácias e eucaliptos

Quando um incêndio atinge um eucaliptal, torna-se quase impossível de extinguir. Um comandante dos bombeiros explicou, num debate público em 2019, que uma plantação industrial de eucalipto em chamas mal conseguirá ser apagada com água. O eucalipto estende-se por vários quilómetros quadrados na região de Monchique.

Lá no alto, vemos o cume da Picota, 776 metros acima do nível do mar. Aparece, por vezes, para voltar a esconder-se por entre os vales. É num desses barrancos que estamos a criar o nosso Jardim Botânico Florestal com várias centenas de espécies de árvore autóctones. É um projeto piloto que pretende representar a floresta original como ela era antes dos incêndios e como está descrita na Rede Natura 2000. Será um museu de história natural?

Seguimos de Oeste para Este a uma altitude de 300 metros. Até à Fornalha ainda falta uma hora e meia. É lá que podemos encontrar a primeira fonte pública de água. Pretendo ir de fonte em fonte para que o meu cão tenha água suficiente para beber. Também trago duas grandes garrafas de água na mochila, mantimentos para alguns dias e mudas de roupa.

Estrada em mau estado

No percurso não existe qualquer loja alimentar por perto. Só ao fim da tarde, quando chegarmos a Silves, estaremos novamente numa zona habitada, com cafés, restaurantes e minimercados.

Uma mochila para caminhadas de longo curso tem uma boa arrumação: as duas garrafas de água estão sempre à mão nos compartimentos laterais, à esquerda e à direita, e em baixo guardo o meu saco-cama. Por cima guardo um par de calças, várias t-shirts, roupa interior, uma camisola e um pequeno estojo de primeiros socorros. Uso sabonete de azeite biodegradável, produzido localmente por uma senhora, em vez de shampoo e gel de banho. Para os primeiros socorros tenho pensos, ligadura, gaze, creme desinfetante, uma tesoura, comprimidos para as dores e uma pomada de calêndula para tratar feridas.

Está um dia quente de verão e ao aproximar-me da aldeia da Fornalha começo a entrar no meu passo, aquele passo em que o caminhar se torna muito mais fácil por estar sincronizado com a respiração. O troço alcatroado está marcado pelos buracos resultantes do último Rally do Casino de Vilamoura, no qual os carros artilhados rasgam curvas uma vez por ano – e está rodeado por eucaliptos e acácias selvagens que se propagam descontroladamente após cada incêndio, ocupando toda a área. Não é esta a biodiversidade que se espera encontrar numa região da Rede Natura 2000, penso eu, insatisfeito. Bruxelas deveria enviar os seus inspetores para o terreno para, nas províncias remotas, verem com os seus próprios olhos qual é a realidade das zonas protegidas.

Já não há vestígios da floresta de outrora e dos seus biótopos. Mas Bruxelas é longe daqui e a burocracia é lenta. Os incêndios de 1991, 2003 e 2018 deixaram as suas marcas. Depois, o Sol e o vento provocaram a erosão do solo, levando as terras mais férteis.

As pessoas que aqui moravam, já se mudaram para a cidade há muitos anos ou faleceram e levaram consigo conhecimentos preciosos que agora faltam à nova geração de hoje. Com o tempo, torna-se mais difícil identificar os donos dos terrenos. E como ninguém se sente responsável pelas terras, as casas ficam em ruínas e o mato cresce alto. É combustível para mais incêndios. Ninguém controla a parcela PTCON0037 e ninguém aqui pretende investir num desenvolvimento sustentável, porque a proteção do ambiente colide com o saque industrial.

À entrada da Fornalha, ou seja, do lado Oeste, quem chega caminhando tem à disposição um banco de jardim e uma fonte à sombra de uma alfarrobeira. Há algumas poucas famílias que moram aqui. Uma velha mesa de trabalho com uma serra, abandonadas junto à estrada, comprovam a quem passa que, em tempos, aqui trabalhou um carpinteiro. Que mais precisa um caminhante do que água para beber e um banco para descansar? Porém, uma placa avisa que a água da fonte não é controlada. Não é água potável. Max ignora o que está escrito na placa. Tem tanta sede que bebe vorazmente. Só para quando o afasto da fonte. Encontramos outro caminhante. Apresentámo-nos. Chama-se Tom. Vem de Inglaterra. Como se entende bem com o cão e Max abanou a cauda quando o viu, decidimos seguir juntos. Ambos queremos chegar até Silves no próprio dia. Tom também trouxe pouca água e quer reabastecer-se primeiro. Pede água à primeira pessoa que encontra na aldeia. A senhora volta de dentro da casa com um garrafão nas mãos e enche a sua garrafa. Como a água das fontes da aldeia não é, desde há alguns anos, própria para consumo, a junta de freguesia oferece um garrafão de 5 litros a cada habitante da Fornalha, uma vez por semana. “Água para consumo humano”, assim refere o edital. Quanto à água da nascente, provoca imediato desarranjo intestinal em Max, o que é preocupante. O que se terá passado aqui na Fornalha para que a água da fonte, que era tão pura, ficasse imprópria para consumo?

A maior parte do tempo caminhamos sozinhos. Os habitantes não se deslocam a pé pelo campo. Em duas horas, dois carros solitários passam por nós. Depois, estamos a sós novamente. Lá no alto, um avião voa pelo céu azul, deixando um rasto branco atrás de si. Faz uma descida gradual para aterrar em Faro. O barulho dos motores altera-se. O interior do Algarve estende-se diante de nós, ao abandono. A cada quilómetro percorrido, confirma-se a dimensão do problema. Desertificação. Nem um animal no horizonte. Quando o perigo não são os caçadores, há outro perigo que espreita na seca extrema dos eucaliptais: os incêndios florestais. É hora de almoço. Aqui, praticamente não se encontram casas habitadas. A maior parte das edificações estão abandonadas e em ruínas. Só se ouvem os tiros ao longe. Os raios de sol passam pelos telhados destruídos. A estrada parece uma fita cinzenta com alguns buracos aqui e ali. Não há ninguém, mesmo ninguém, que, neste domingo, siga a pé pelo campo em direção a Este, à parte destes dois estranhos estrangeiros com um cão. É o que deve ter pensado, em algum momento, a senhora na Fornalha. Via-se pela sua cara, mas não ousou expressá-lo. Foi inventada a roda e agora andam a pé porquê? Abanou a cabeça quando lhe dissemos onde pretendíamos chegar, ainda nesse dia, e ainda tínhamos que encontrar um local para passar a noite… Como se não houvesse nada melhor que fazer do que caminhar por terras sem ninguém e onde não se passa nada. No ar, só se veem moscas e aviões com mais “carne fresca” – que é como quem diz, turistas acabados de chegar. Da Fornalha, seguimos pela rua deserta no sentido de Laranjeira, a Sul, para depois virarmos e seguirmos um caminho até à barragem do rio Odelouca. O piso é pedregoso e inclinado. E persistem as monoculturas. O concelho de Monchique acaba junto ao rio, que é onde começa o concelho de Silves.

Tal como eu, Tom anda à procura. Trabalha como WWOOFer numa quinta perto de Silves. Não falamos muito. Há uns dias subiu de Silves a Monchique e agora está de regresso. Procura um terreno fértil e uma casa em Portugal, pois pretende deixar Inglaterra. Não há nada melhor do que percorrer o interior a pé, observando a paisagem e verificando a questão da água. Quem pretende comprar um terreno, aqui, no faroeste europeu, precisa de água, porque esta é tudo, sem água não temos nada. Este recurso começa também a escassear durante a nossa caminhada. Parece que não trouxemos água suficiente e estamos com muita sede. Ao atravessar cá cima a única ponte sobre o rio Odelouca, deixamos para trás a Serra de Monchique. Restam-nos 15 km até Silves, ou seja, “um passeio” de cinco horas, pelo menos. Iniciamos a subida para a próxima série de colinas que antecedem a serra. Ao fim da tarde, previsivelmente pouco depois do anoitecer, chegaremos a Silves, se conseguirmos encontrar água fresca, entretanto.

Max, um cruzamento entre Pastor-Belga e Rafeiro-Alentejano, é um animal esperto. Para suportar a sede avança sempre até ao próximo medronheiro e espera à sua sombra. É sinal que está a sofrer muito com a sede. Estes cães são sempre cuidadosos, guardam rebanhos e protegem as pessoas. São como perscrutadores. Avançam para sondar as redondezas, e, quando está tudo bem, retornam, para depois voltar a avançar. Max anda o dobro do caminho. Enquanto eu caminho 25 km, ele anda, pelo menos, 50, sempre para a frente e para trás. Se Max procura agora a sombra, isso significa que tem mesmo que guardar a sua energia, está cansado e com sede. Dou-lhe um pouco da minha água e ele bebe-a vorazmente. Depois, de súbito, no meio deste lugar inabitado, encontramos uma casa com uma bela horta e com água. Muitos dos que aqui vivem são verdadeiros mestres na agricultura de subsistência. Melhoram a terra com o estrume do burro. Têm algumas cabras que garantem sempre leite e queijo em casa. As galinhas andam soltas e adubam a terra. E novamente uma mulher surge com um garrafão de cinco litros para nos ofertar água. Tenho uma tijela dobrável para o Max na mochila e encho-a até ao topo. A sede começa a ser dolorosa.

 

Continuamos pelo caminho que agora segue pela rota de peregrinação hoje conhecida por Via Algarviana, mas que que é a rota vicentina desde o século quarto. Vem de Valência, em Espanha, e atravessa toda a Estremadura até Mértola, em Portugal, seguindo por Alcoutim, Cachopo, Salir e Alte até Silves e Monchique, para depois alcançar o fim do velho continente em Sagres, no Cabo de São Vicente. Estamos a fazer esse percurso ao contrário, de Oeste para Este. São caminhadas que podem durar várias semanas, proporcionando um tempo de reflexão, uma espécie de meditação durante o caminhar. Quem caminha, tem todo o tempo do mundo para observar atentamente a paisagem e aguçar os seus sentidos, negligenciados na azáfama da vida na cidade. Encontram-se pessoas pelo caminho com quem podemos partilhar algumas etapas. Depois, cada um segue o seu caminho. É o que decidimos, Tom e eu. Escolhemos rotas diferentes até Silves. O Sol está a pôr-se, mas antes de escurecer ainda consigo ver, primeiro o moinho e depois as fortes muralhas do Castelo de Silves. Ao escurecer, chegamos ao primeiro café, onde encomendamos uma bebida e uma sandes de queijo. Ainda falta uma meia hora para chegarmos à Residêncial Villa, onde nos espera a Dona Madalena. Como tenho novamente rede móvel, aviso da nossa chegada.

Mas ainda há mais uma paragem. Recolho a primeira bolota de “quercus canariensis” mesmo ao final do dia, com o senhor Carlos, agricultor de 75 anos, junto ao caminho antes de entrar em Silves. Foi o seu filho que plantou cinco destas raras espécies frente à sua casa. São cinco árvores que não mostram ter problemas com a falta de água, suportam bem a seca e sombreiam o jardim. Primeiro, apanho apenas uma bolota, mas depois vejo muitas caídas no chão. As bolotas desta espécie são verdadeiras preciosidades. Suspiro, ao admirar o verde intenso destas árvores. Em frente, na casa do vizinho, as folhas das laranjeiras estão secas e os frutos caiem verdes da árvore. Água? Não puderam regar os citrinos porque o furo não tinha água suficiente. Na montanha à volta desta pequena localidade, os eucaliptos estão alinhados como soldados de um grande regimento.

No Sul da Europa, a questão da água tornar-se-á uma questão de sobrevivência caso não exista uma mudança de atitude. Escavadoras fizeram socalcos e foram plantadas filas sem fim da pior de todas as árvores. Um eucalipto com três anos retira até 60 litros de água da terra, alcançando já uma altura de seis a nove metros. Uma tonelada da madeira dessa árvore abatida aos nove anos rende apenas 16,75 euros. Um valor muito diferente do que garantia antes da crise, nos tempos áureos, quando rendia 40 euros. Abano a cabeça. Devem existir muitas pessoas que não estão a fazer bem as contas. Que vantagem tem um eucalipto diante de outras espécies? Até uma cerejeira, após cinco anos, tem mais rentabilidade do que um eucalipto. E castanheiros, alfarrobeiras ou figueiras também, e são autóctones. Não podem ter estado assim tão enganados durante centenas de anos apenas porque esta indústria paga agora ao Estado uma quantidade gorda de impostos para a produção e exportação de papel.

Eu, que sou um observador estrangeiro, mas que vivo e convivo com os locais há mais de 30 anos, tendo aprendido a sua língua, gosto mais das árvores autóctones, de crescimento lento, da alfarrobeira, oliveira, amoreira, figueira ou do sobreiro. Os pinheiros-mansos também são maravilhosos. Tem que haver diversidade. E estes carvalhos “quercus canariensis” são árvores muito especiais… Pergunto ao proprietário se posso apanhar algumas bolotas. Ele responde-me: “apanha quantas quiseres, vais precisar delas em Monchique.” Apanho, por isso, cinco bolotas de cada um destes carvalhos-de-Monchique para o nosso viveiro. O dia de caminhada teve um fim feliz. De repente, uma bomba de gasolina anuncia Silves e a civilização, a escuridão é quebrada por um anúncio luminoso. Compro um saco de batatas fritas e uma grande garrafa de água. Fazemos o check-in e apreciamos a nossa simples refeição.

Uwe Heitkamp (60)

jornalista de televisão formado, autor de livros e botânico por hobby, pai de dois filhos adultos, conhece Portugal há 30 anos, fundador da ECO123.
Traduções: Fernando Medronho & Kathleen Becker
Fotos: Uwe Heitkamp, Henk Hin

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