Na Karuna procura-se soluções?
Sim, sim. É essa a razão pela qual a construímos, em 1992. Pode-nos dar soluções, pode receber soluções. Este não é um espaço fechado. Pode receber também.
O que acontecerá este ano neste espaço?
Nós organizamos retiros de silêncio. Porque se sente que o interior não está mudado, Karuna ajuda a olhar para dentro, estar certo do que estamos a fazer, para sermos corretos.
Quer contar-nos uma história da sua infância?
Quero. É uma história que guardo profundamente, uma história entre mim e o meu pai.
O meu pai, como muitos indianos, emigrou para África. Tinha uma grande loja, era grossista e bem-sucedido no seu negócio. Pessoa de disciplina rígida, quando eu saía da escola, tinha que ir para a loja. Uma criança pequena senta-se e não têm nada para fazer. Nessas circunstâncias, estudava um código do custo dos artigos que o meu pai vendia: “A” significava quatro, esse tipo de coisa que só ele sabia. E que eu sabia também. Num belo dia, entra um senhor para fazer grandes compras e pede para reduzir o custo de um artigo. E diz o seu preço.
E o meu pai disse-lhe assim: “Esse preço é menos do que o meu preço de custo”. O negócio acabou por fazer-se. Depois, fui confirmar se o meu pai estava a dizer a verdade. E vi pelo código que ele mentira. O preço de custo não era o que havia referido.
E como uma criança simples, inocente, à noite dirigi-me a ele e disse-lhe: “O pai mentiu. O seu preço de custo não era o que estava a dizer.”
O que é que me aconteceu? Levei uma bofetada. Porque estava a dizer que o meu pai estava a mentir. Esse mesmo pai, quando eu mentia em pequenas coisas minhas (“Porque é que chegaste atrasado?” – esse tipo de coisas), também levava uma bofetada. E assim fui percebendo nesta vida que percorremos o caminho a ensinar mas dizemos coisas que são conflituosas.
Dizemos aos outros: “Se deres, vais perder”. Então as pessoas não querem dar. E depois, ao mesmo tempo, dizemos: “dar é bom, partilhar é bom.” E uma criança cresce neste mundo assim, confusa. Não sabe para que lado se virar. A mentira, quando dita, é uma bofetada. A mentira vinda dos outros também é uma bofetada. Para que lado a criança irá?
É uma história muito simples entre um pai e um filho, mas fez-me perceber que estamos sempre divididos em aprender coisas muito bonitas, mas não para as aplicar. Este momento faz parte de mim, lembro-o para não dizer sempre coisas muito bonitas aos outros, mas sim certas, incluindo às crianças.
Ensinar algo e depois mostrar que têm que viver de outra forma. Ensinar a não ser egoísta e dizer às crianças para serem egoístas. Ensinar a não competir e perguntar “qual é a tua nota?”. Se a nota for grande isso traduzir-se-á em orgulho, se for pequena, gerará tristeza. Isso significa que eu não estou a ensinar.
O Bal vive da maneira como quer viver?
Com algumas falhas. Não consigo viver sempre como quero. Não estou sozinho, estou ligado ao todo. Às vezes o meu querer encontra-se com outros quereres e, muitas vezes, o que eu quero não tem de ser mais forte em relação ao que os outros querem. Posso seguir o que os outros querem. Juntaria um olhar a esta pergunta, que é aquilo que nos liga, aquilo que é comum a todos nós.
Todos desejamos a felicidade. Trata-se de um parâmetro que é igual para si e para mim, para todas as etnias. Todos os seres querem ser felizes. O que quer que eu faça, pense ou diga tem como destino final a felicidade. E, pouco a pouco, vejo que os outros fazem a mesma coisa.
Fazer sempre o que se deseja é um problema da nossa sociedade, na medida em que traz conflito com os outros que querem fazer de outra forma. Nisto, perco a paz, perco aquilo que é a vida. Se neste momento não luto para fazer só o que eu desejo, fico atento ao que o mundo quer. E vejo o que é que eu quero do mundo: se estar em paz, se estar bem ou se viver em divisão e conflito.
Existe uma receita para viver feliz?
Não existe uma receita fixa, porque os seres humanos são diferentes, mas acredito numa receita dinâmica, porque a vida é também ela dinâmica.
Todos os seres têm consciência de que se derem atenção às coisas, essa receita falará por si. Para todos nós. Não será sobre os que provaram ser capazes de subir os Himalaias. Quem olhar para o que está à volta terá a receita, entenderá que tudo o que nos toca, muda.
Tudo é transitório, tudo é impermanente. A observação leva-nos a essa receita comum a todos nós. É uma receita que não falha. Nem nos Himalaias, nem em Nova Iorque, nem aqui. Nem na guerra nem na paz. Tudo é transitório e impermanente. Essa é a receita. Se soubermos isso, as coisas mudam.
O Bal também têm crianças?
Tenho três filhas com a Ana.
E ensinou as suas filhas deste modo?
Eu considero que as minhas filhas não têm que ser como eu acho que elas têm que ser. Elas são livres de serem o que quiserem. Ensinámos-lhes esta mesma mensagem: Tudo é transitório e impermanente.
As histórias que conto são as minhas histórias. Têm um efeito sobre mim e podem não ter o mesmo efeito sobre elas. Não há uma imposição daquilo que é a história da minha vida, são livres de viver como desejarem.
Se refletirmos sobre os problemas que existem no mundo, qual é o problema mais grave para o Bal?
De uma forma imediata podemos ver problemas ecológicos, de poluição, de cultivo errado, etc., mas eu iria um bocadinho mais longe: esses problemas surgem porque o ser humano é treinado para ser ganancioso, querer o máximo para si, esquecendo a lei natural de que todos nós estamos interligados, dependentes. Einstein disse-o. Fazemos parte de algo a que chamamos universo.
Ao querer o máximo para mim, não estou a pensar no outro, e isso resulta em guerras, conflitos, desordem e desrespeito em relação à terra e a nós mesmos. Não somos donos disto. Sinto que se o mundo quisesse mudar, seguir as regras da natureza, podia fazê-lo. Agora!
Transformar egoísmo em altruísmo não acontece de um dia para o outro. Qual será o primeiro passo?
Será sempre reconhecer que o egoísmo é a fonte dos meus problemas. Se o dinheiro trouxesse felicidade, quanto mais ganhasse, mais feliz ficaria, mas a vida mostra-nos que não é assim. Ter mais terras, mais poder, mais fama não me traz mais felicidade. Todos sabemos. Constatamos que vivemos em erro e isto não muda de um dia para o outro, porque temos hábitos enraizados. Com treino chegamos lá. Este, pode começar numa escola, entre os mais pequenos, seria mais fácil. Começar aos sessenta anos é mais difícil.
Tenho o meu coração aberto quando digo isto: se me chamarem de egoísta eu vou ficar zangado. Isso significa que cá dentro sei que ser egoísta não é bom. Todos os seres o sabem. Ninguém quer ser assim chamado, e no entanto somos egoístas.
O mundo da comunicação tornou-se incrível. Dizemos: “eu sei, eu sei…”, mas a verdade é que não fazemos. We need a training. Antigamente dizíamos: “Visão, ação. Se estamos muito distantes, precisamos meditar sobre a forma como vemos”. E isso não significa sentar-se de pernas cruzadas ou viajar até países orientais. It is a real thing, que é mudar o hábito. Isso é meditar sobre a visão. É olhar aquilo que nós acreditamos.
Se toco num assassino, na sua mão, com carinho, e pergunto: “Tem mulher? Tenho. Tem crianças? Tenho. Se alguém as matar, fica contente? Não.” Ele sabe que tirar a vida não é bom. Todos nós sabemos. Se treinarmos, todos podemos mudar. Se eu mudar, estou a ajudar o mundo. Quando o mundo muda, eu também mudo. Portanto, não se trata de querer que os outros mudem. Há muitos anos que decidi: “eu vou mudar”. Eu não posso obrigar o mundo a mudar…
…e chegou à profissão de médico. Pode-nos contar como foi trabalhar como médico?
É uma história curiosa. Estudei a Medicina chamada convencional e, a certa altura, disse para mim: “Não quero continuar”. Recusei-me a pôr a bata branca e a receitar medicamentos. Foi um risco, deixar o título de Doutor, os meus pais não ficaram contentes.
Até que fiquei muito doente. Estava nas altas montanhas dos Himalaias, em 1977, num acampamento. Uma amiga desceu em procura de ajuda. Não existiam médicos e eu não queria descer até ao hospital. Ela trouxe consigo um rapaz com um grande livro e umas agulhas. No seu percurso tinha aprendido acupuntura.
Depois de alguns tratamentos comecei a sentir-me melhor. E a vontade de poder ser útil aos outros através da Medicina voltou. Mas com as agulhas! Pesquisei, voltei para a Europa, estudei. Há 37 anos que ponho em prática essa medicina. Compreendi que só assim posso agir num plano físico, emocional e mental de outro ser, ajudando-o com a sua energia, beneficiando-o sem efeitos secundários.
Ser útil é importante, não é?
Sim, porque é sinónimo de felicidade.
… também para os jovens?
Absolutely. Jovens, crianças… Uma criança muitas vezes acorda e diz: “Mãe, o pão está duro! Não há manteiga!” Se formos treinados agora, a criança dirá: “Mãe, queres que vá buscar pão?”
Esse conflito que existe entre o pequeno e o grande vêm desse mau treino, um erro de olhar que, se pensarmos nos outros, se quisermos ajudá-los, estes vão sempre retribuir essa ajuda. Não há que ter receio. Vou dizer de coração a coração: eu trabalho há trinta e seis anos e desde o primeiro dia até hoje, quem quer que venha a um tratamento, se me pergunta “quanto é?” eu digo de “zero a…”.
Todas as pessoas que vêm tratar-se comigo têm direito a tratamento, onde quer que eu esteja. As pessoas diziam-me: “Vão roubar-te! Vão aldrabar-te!”. Olho o resultado.
Como começa o seu dia? Como o planeia, estrutura?
O meu dia tem dias. Isto é, um dia é muitas vezes vivido de formas diferentes. Quando trabalho no consultório acordo muito cedo e sento-me um pouco a meditar. Por hábito, o primeiro pensamento quando acordo é: o que quer que eu pensar, disser ou fizer, vou estar atento para que seja benéfico para os outros. Essa é a minha primeira intenção. Que eu possa, dessa forma, cuidar de mim e dos outros.
E depois começo o dia. O pequeno-almoço é água, normalmente não como, apenas por vezes fruta, e depois inicio o trabalho. Quando estou na Karuna vejo o que há para fazer, para regar, outras coisas onde eu possa ajudar.
É muito simples o meu dia-a-dia. Quando estou aqui e o dia me permite ir nadar ao mar, faço-o. Chamo a isso “olhar para o céu azul tocando na água fresca”. Quando alguém vêm, como o meu amigo veio, estou com as pessoas, e se elas precisam de mim, faço o que elas precisam: conversar ou até tratar. E é assim.
Vivemos num mundo que está organizado de forma linear, ou seja, compramos algo, consumimos e deitamos fora, o que gera muito lixo mas causa também uma extração considerável de recursos que, daqui a alguns anos, vão escassear. Destruímos a base da nossa vida com este tipo de economia. Existem caminhos diferentes, caminhos que nos mostram uma vida circular?
O Homem está a destruir de uma forma curiosa a Terra, o planeta e a si próprio, porque também vive num planeta. Reconhecemos esses factores. De dentro, se houver uma atenção clara no que estamos a fazer, vai-se perceber que vivemos num mundo onde se criou insegurança.
Não estou atento a ver de que preciso. Se preciso de um, compro quatro. Eu preciso de estar bem, mas vivo onze meses mal à procura de um mês em que vivo bem. E nos primeiros quinze dias passo mal porque ainda não esqueci os onze meses. Os próximos quinze dias passo mal a pensar que se avizinham outros próximos onze meses. A vida é um absurdo e no entanto vivemo-la!
Se estivermos mais atentos em ver de que realmente precisamos tudo muda. Se vejo uma praia com lixo, não gosto. Se não gosto, os outros não gostam. É aqui que nos tocamos de novo, estamos juntos. Alguém que deita lixo no chão também não gosta de ter lixo no bolso, no carro ou em casa. Há esse erro algures naquilo que consumimos, naquilo que precisamos, na forma como consumimos. We have to doubt – nós temos que duvidar das informações que nos dão.
Nas notícias que nos chegam todos os dias tudo é mau. Seria bom que as pessoas tivessem confiança em vez de insegurança.
Como podemos transformar medo e ganância em segurança?
Nenhum problema é sem saída. É assim que eu vejo a vida. Quando há problema, também há saída. Senão para que serve viver? A vida não é um túnel fechado. Tem sempre uma luz no fim. Convém que saibamos vê-la. Eu sei, eu procuro saber, eu procuro saídas e mostro-as para que as pessoas não sintam que não há saída.
Quando ouvimos todos os dias que não há saída, é a insegurança. Os jovens ouvem: “não vai haver emprego, não vai haver dinheiro…” Sábado e domingo estão a beber cerveja, a deitar garrafas no Terreiro do Paço, no Rossio. Sentem que estão a estudar, a tirar um curso, mas depois não vão ter emprego.
E nós aqui, que estamos no campo, sabemos – há emprego. Ao nosso lado estão damascos. Vão cair, vão apodrecer. Apanhem e comam. Se olharmos para Portugal vemos terras tão abandonadas, aldeias largadas, porque as gentes só veem através do olhar da ganância e do medo. Temos caminhos que nos dão segurança, basta traçá-los. Vamos procurar soluções, vamos arranjar soluções que também têm que ser dinâmicas, e não fixas.
Vamos falar sobre a sua terra natal. Qual o futuro?
Eu observo há tanto a participação de África na evolução humana. Eles, às vezes, dão-nos a solução para as coisas que procuramos: gastar menos, deitar fora menos. Não têm a mentalidade de açambarcar tudo o que os outros têm. O futuro dependerá sempre das circunstâncias, da perspetiva.
E, possivelmente, quando observamos os ciclos da vida, África sempre participou na evolução do ser. Não é sempre visível, porque o que é visível é o que faz muito barulho. Mas, sempre em silêncio, no seu próprio sofrimento, contribuiu profundamente. E penso que vai continuar.
Encontrou a sua paz em Portugal?
Sim. Eu diria que encontrei a paz dentro de mim. A paz não é uma coisa que se encontra num país. Encontrei-a dentro de mim. Mas Portugal ajuda no encontro com pessoas que nutrem laços de carinho umas pelas outras. Ainda têm abertura. Este espaço, meu querido amigo, não tem uma chave. Aqui está tudo aberto, está sempre aberto.
Obrigado.