Via Algarviana – Rota Vicentina – Rota do Pescador
Dia 1 – Aljezur – Odeceixe (18 km)
Neste dia de abril, o tempo está como o conheço em abril: instável. Durante duas semanas, até ao dia de hoje, caminhei 250 quilómetros pela Via Algarviana, só adivinhando o Atlântico que se encontrava a pouca distância. Agora, o vento cheira ao sal e ao colorido que enfeita o meu caminho. Tenho pela frente mais 350 quilómetros, marcados com linhas no mapa das estradas, os quais inicio no Castelo de Aljezur assobiando-os a uma canção: Só onde estiveste a pé, estiveste mesmo presente. Penso que o ser humano nasceu para caminhar. Quando não caminha, no sentido literal da palavra, caminha toda a sua vida no espaço exterior e pela vivência interior. O que procura no seu caminho? Não. Não procuro o sonho, mesmo que pudesse ter beijado um ou outro sapo que encontrei à beira do caminho. Procuro algo “simples”, algo à primeira vista “normal”, que pratico todos os dias e cuja prática é mais fácil para mim quando posso estar e atravessar a natureza: a realidade – aquilo “que é”. Os meus pensamentos tornam-se mais claros com cada passo, assim como o céu se abre sobre a praia da Amoreira. Os moinhos reinam sobre as colinas em Odeceixe e posso afirmar: isto é lindo – não tenho que fazer nada, só estar presente.
Dia 2 – Odeceixe – São Teotónio (17 km)
Hoje o canto do cuco e uma série de borboletas amarelas acompanham-me no caminho entre Odeceixe e São Teotónio. São as únicas constantes na diversidade que irei viver durante esta etapa. Os ribeiros dão espaço à criatividade da vegetação. É-me exigida criatividade para saltar sobre as muitas e grandes poças de água. Assim, atravesso o que, para mim, é como uma floresta virgem, e chego, depois de uma ligeira subida, a um planalto, onde se alarga o espaço e sinto o cheiro do eucalipto. Perdida em pensamentos e sem vivalma à minha volta, passeio por florestas e perco a noção do tempo e do espaço. Os meus sentidos perdem-se entre cheiros, cores, o sabor do ar e o ruído do vento e dos pássaros. Estava como que inconsciente numa espécie de transe, quando aparece uma ovelha, e com esta, inúmeras outras. Um cenário romântico que me poderia ter levado a chorar de emoção, mas o rebanho está nervoso. Subo para um tronco de sobreiro para deixá-lo passar. Quando a calma regressou, o sol estava no ponto perfeito para a pequena sesta que me permito fazer antes de entrar na vila adormecida de São Teotónio. Acordar, andar, comer, dormir. Coisas básicas. Faz bem simplesmente ser simples.
Dia 3 – São Teotónio – Odemira (19 km)
Quando se caminha, deixa-se o passado para trás com cada passo. Mas, algumas coisas – sentimos isso -, trazemos sempre connosco. Quando, este domingo, os sinos tocaram, e eu estava a bebericar o meu café no largo da igreja, encontrei-me, de repente, novamente no lugar onde cresci: numa aldeia. Vale a pena, num local desconhecido, ficar a observar em redor com toda a calma. Não falo a língua das pessoas que vivem cá, mas, um domingo no largo de uma aldeia dá-me uma sensação de “dejá vu”. Por isso, neste dia, revisito interiormente o meu dia-a-dia em criança.
Ao sair da aldeia, encontro-me, de repente, sobre um campo que, no seu colorido, se estende por 20 quilómetros à minha frente. Irá ser domingo todo o dia. Apesar de eu ter escolhido pôr só calças e t-shirt, como faço sempre que caminho (tento manter o equipamento o mais leve possível), e dos meus sapatos de caminhada não estarem muito limpos, sinto-me um pouco burguesa ao passear sem esforço por estes caminhos tão agradáveis para os meus pés. Aqui um pau, ali uma pedra, mas sem subidas, e, consequentemente, sem descidas. Tudo muito “normal” hoje – e isso, de certa forma, faz-me lembrar a minha terra natal. O rio Mira, quando não está do meu lado direito, está à minha esquerda. Também isso é como antigamente: o cantar do correr da água e dos pássaros eram o coro domingueiro. Na capital de Odemira procuro em vão pelos habitantes… Por estar um sol muito forte concluo que se devem manter algures pela sombra.
Procuro abrigo. Encontro-o na igreja. Os bancos são tão incómodos como na recordação que tenho de há tantos anos atrás. Fico uma hora ali sentada bem direita, mas mesmo assim descontraída, é assim que me recordo da igreja. Estou feliz: um domingo é coisa boa!
Dia 4 – Odemira – São Luís (25 km)
Há dias assim. E este é desses: tudo flui. Quer dizer: eu caminho, como se não estivesse a caminhar, como se algo me caminhasse. Soa enigmático? É mágico! Deixo Odemira de madrugada. O clima do Sul ensinou-me isto: há um ponto do calor em que é melhor descansar as pernas do que obrigá-las a carregar o próprio corpo. Rapidamente me vejo envolvida em algo místico, que se prolonga até São Luís. A paleta virtuosa de vegetação e animais embala-me hoje neste estado fabuloso de “ser caminhada”. Posso entregar-me por completo ao espetáculo de imagens e lugares. A música do ribeiro deixa-me mergulhar nas profundezas do ser, tudo ao mesmo tempo… algo acontece. Quem caminha deve conhecer isto, mesmo que não o admita diretamente. Este algo, na maior parte das vezes, é sentido como algo incomodativo. Há quem lhe chame dor.
Conheço este fenómeno desde sempre, e tenho de explorá-lo sempre de novo em todas as longas caminhadas. Bolhas. Aprendi a não ser dor, mas sim, a ter dor. Esta diferenciação facilita a própria dor. Para além disso, dá-me a liberdade de escolha entre: quero sofrer ou não? Na maior parte das vezes digo: não, o que me permite só sentir a dor (normalmente não há outra possibilidade), mas não sofro. Vou com ela, e, na maior parte das vezes, acabo por ultrapassá-la, chegando a algo novo. E, assim, caminho com dores, mas alegre, pelos jardins de São Luís. Ao fazê-lo, estou completamente mergulhada na natureza: e a dor faz parte disso.
Dia 5 – São Luís – Cercal do Alentejo (21 km)
Os dias ficam mais compridos. Ao contrário de Berlim, aqui, às sete, não estamos já a beber o nosso terceiro café. Deixo, portanto, São Luís ainda em pleno silêncio, ou seja, São Luís despede-se de mim em silêncio. Uma caminhante que analisa o mapa, que lhe mostra a montanha mais alta da região. Hesito se devo acrescentar a subida de 329 metros à minha lista de montanhas alcançadas, mas o meu coração de caminhante diz-me insistentemente: uma montanha é sempre uma montanha! Pois. São assim as montanhas. E o que se faz depois de se ter chegado ao cimo de uma montanha? Isso! Volta-se a descer. Isto das montanhas é coisa simples! E, entretanto, pode-se festejar ter chegado ao cume, ou algo mais elevado, ou festejar-se a si próprio – ou tudo junto. O sol da manhã ilumina-me o rosto, irradiando do alto da serra até ao mar, e eu festejo este momento na sua genuína simplicidade. Nada há a alcançar para além do próximo passo. “O segredo em avançar está em dar o primeiro passo” (Mark Twain). E, logo desde pequenos, aprendemos a dar um passo após o outro. Desde que o ser humano se elevou sobre os seus próprios pés, esta é a forma mais simples e natural de nos deslocarmos: andar. Ao andar, sinto a realidade, simplicidade e o genuíno passo a passo. Imagino que se der os passos de uma forma bem consciente, eles irão ficar marcados nas minhas células de modo a que eu consiga andar com esta simples e genuína sensação, às sete da manhã, ao ziguezague no trânsito da hora de ponta de Berlim.
Dia 6 – Cercal de Alentejo – Vale Seco (23 km)
E se os meus pés têm dor, a minha alma ganha asas. O orvalho faz nascer a harmonia na folhagem do cereal e da erva nas pastagens do Cercal. Passear pela natureza, admirá-la, faz-me fazer parte dela. Sinto uma ligação. Uma estrada asfaltada que trespassa as pastagens apresenta-se-me como um carro blindado num quarto de criança. (Quase que) sinto dor. Não fará parte de tudo ambicionar o crescimento? O ser humano ambiciona o crescimento. A pergunta é: até que ponto alargamos essa ambição em detrimento daquilo que nos garante a própria vida: a natureza? Quando o meu olhar passa sobre as pastagens e para sobre o asfalto, pergunto-me como seria se a natureza falasse connosco. Há uma nuvem que passa. Passa, tal como os meus pensamentos. Escolho os pensamentos que sigo, é isto a liberdade. E que pensamentos realizo, também isto faz parte da minha liberdade.
Observo os pássaros e oiço o vento. É assim que sigo este dia pela natureza. Deixo os meus pensamentos crescer dentro de mim, o que, no meu dia-a-dia, não é uma coisa óbvia… O que irei eu fazer crescer ainda nesta vida?
Dia 7 – Vale Seco – Santiago do Cacém (18 km)
Hoje termino a última parte do trilho histórico em Santiago do Cacém. Alguns caminhantes iniciam, e outros terminam aqui a sua caminhada – e ainda outros seguem um percurso completamente diferente. É isto o lado maravilhoso deste trilho: a rota adapta-se de forma criativa às suas condições e à sua vontade. As terras do interior preenchem de silêncio o tempo, que parece ficar parado, e a costa segue a lei das marés no seu movimento. Vou percorrer esta etapa de hoje de forma diferente: sem refeições antes, refeições durante ou refeições depois de andar – um prazer que por vezes é uma obrigação ou simplesmente o hábito. Criei o hábito de quebrar hábitos, para descobrir se algo que faço habitualmente, analisando bem, acaba por ser mesmo fundamental. É para isso que faço algo de forma diferente. Simplesmente partir. Beber leite de aveia em vez de leite de vaca. Tentar ir às compras sem gerar lixo plástico. Se, depois da experiência, chego à conclusão que o meu hábito faz sentido (para mim e mais do que só para mim) – agarro o desafio de direcionar esse hábito em direção a esses valores que fazem mais sentido. Embora na minha vida não construa estradas de asfalto, como consumidora, também tiro algo à natureza. Por isso, para mim, faz sentido verificar o hábito do significado da compra de alimentos. Caminho horas a fio como uma tartaruga, e se o sol não se tivesse posto, ter-me-ia esquecido do tempo. Ao caminhar, temos tanto tempo para pensar em tantas coisas. Não me admira nada que o autocarro para Porto Covo só passe uma vez por dia. É quase um alívio. Em minha casa, o metro passa de dois em dois minutos.
Dia 8 – Porto Covo – Vila Nova de Milfontes (20 km)
Estou com dores musculares. Não nas pernas. Tenho dores musculares na cara. Durante seis horas estive a sorrir de orelha a orelha. Os únicos momentos em que a minha boca deixou de o fazer foi para dizer “Oh meu Deus!”. Às sete horas tenho as dunas de Porto Covo banhadas no rosa avermelhado luminoso do Atlântico à minha frente. O ruído das ondas do mar, das gaivotas…, e à minha volta tudo tem aquela luz. Contenho-me ainda. Um minuto e mais outro. Sinto algo avassalador. Será que tenho a coragem? Uma declaração de amor é – provavelmente dependendo da experiência – uma medida desafiante. Tem que se enfrentar o risco quando se quer ser sincero. Bem, é igual, o mais importante é estar vivo! Tomei a decisão e… gritei: “Que belo! Adoro a vida!” Valeu a pena. O mar, grande e forte, aguenta bem a minha declaração de amor – e até que eu a grite. Isto não é obvio. Neste dia cruzo-me com mais caminhantes do que em toda a semana anterior. Há lugar para todos. Sou como uma criança que se deixa surpreender com todas as novas vistas, que se deixa ir – também ao exprimir esta alegria! É divertido ser sincera! Sincera consigo e com os outros. E… sinceramente? Quantas vezes é que somos sinceros naquilo que dizemos? E, com que frequência dizemos às outras pessoas sinceramente o que gostamos nelas?
Dia 9 – Vila Nova de Milfontes – Almograve (15 km)
Os dias da semana têm menos importância quando caminhamos, do que no dia-a-dia comum. Mas, hoje é fim-de-semana e vem-me visitar um bom amigo juntamente com o seu cão. Ver uma cara conhecida e poder trocar ideias com alguém que eu conheço e que me conhece é algo a que sei dar o seu valor, mesmo “não me faltando nada” quando estou na natureza. Ele recebeu-me com um copo de vinho, em Vila Nova de Milfontes, ao final da tarde do dia anterior, e, de manhã, vagueamos pelo mercado para nos abastecermos de fruta e legumes frescos. Se, em Berlim, tenho de ler as etiquetas para verificar se as batatas não serão da China, aqui, nas bancas do mercado não há dúvida quanto à proveniência regional dos produtos. Valorizo muito isso. Juntos, observamos o cintilar do mar. Dois amigos caminhantes no seu percurso. Também valorizo muito isso. Porque, caminhar em conjunto com alguém, para mim não é óbvio. Quando conseguimos caminhar com alguém, lado a lado, um longo percurso, em silêncio, conversando, filosofando, entendendo-nos ou discutindo…, notando também que cada um pode manter o seu passo como quer, e pode ser como quer…; e quando, para além disso, nos prezamos mutuamente pelo que somos e fazemos, então, estamos perante aquilo que para mim é um dos tesouros especiais deste mundo: um bom amigo.
Dia 10 – Almograve – Zambujeira do Mar (18 km)
A jornada de hoje começa junto a uma ETAR. O dia, portanto, já só pode ficar melhor. O encanto das primeiras curvas junto à praia apresenta depois uma vista sobre uma paisagem arenosa que lembra o planeta Marte. Os passos na areia são acompanhados e facilitados por um vento tempestuoso. Olho com respeito a profundeza de algumas das falésias e admiro a força das ondas. O Cabo Sardão aparece após metade da etapa, enfeitado pelo seu farol. Após ter passado por ele, ponho-me a ouvir música de Berlim e assumo um passo mais desportivo. O trilho mais fácil que vai ao encontro da Zambujeira lembra-me o longo troço em que costumava correr em Berlim. Isto faz bem. Com seis quilos de bagagem, este passo rápido é partida ganha. Chegada à Zambujeira do Mar, entrego-me à (única) “obrigação” diária: lavo-me. Primeiro, mergulho-me a mim própria no Atlântico e depois à minha única muda de t-shirt. Depois de me considerar limpa, exploro as ruas e termino o dia como o Pequeno Príncipe: com um pôr-do-sol.
Dia 11 Zambujeira do Mar – Odeceixe (22 km)
O inspirar alterna com o expirar. Depois da passada rápida, hoje, alterno com um abrandar de ritmo, inspirar – um passo com o pé direito. Expirar – alteração do apoio no pé. Inspirar – um passo com o pé esquerdo, expirar… Por vezes, desviamo-nos um pouco para a direita, outras para a esquerda, mas avançamos sempre. Ao manter o olhar para trás, mudo de perspetiva. O olhar para a frente deixa muita margem para a imaginação. Só tenho a certeza daquilo que vejo naquele momento. E isso também muda com cada passo. Quando estamos habituados ao andamento de um veículo ou ao andamento na cidade, quase que pensamos que o ambiente muda com cada pequeno passo. Quando nos adaptamos, ou seja, andamos a pé à velocidade natural para o ser humano, facilmente somos testemunhas dessas mudanças constantes. Tudo o que vemos é novo a todo o momento. Mesmo quando nada fizemos para além de uma nova respiração. É um fenómeno. Para um budista, é a realidade normal. Para mim, por vezes, ainda é fascinante e surpreendente ao mesmo tempo: um milagre após o outro. De certa forma, conhecido e, no entanto, sempre novo. Um passo após o outro. Sinto-me familiarizada com a Natureza. Sinto que cheguei a onde queria, apesar de estar em movimento.
Dia 12 – Aljezur – Arrifana (22 km)
Hoje o abrandamento tem ainda mais efeito. Movimento-me em câmara lenta. E é em câmara lenta que observo hoje, em todo o detalhe, o que vem ao meu encontro. A primeira parte do percurso, por ser em monótono asfalto, permite-me explorar a paisagem da minha alma. Quando vejo o relevo da costa na baixa-mar, a minha alma ganha asas e voa pela paisagem exterior. Um parapente aparece ao meu lado e eu estou a ouvir “Le vent nous portera”, de Noir Desir… sincronismo. Eu sei: estou certa. Aqui onde estou, certa na maneira de ser, estou certa. Quando o exterior e o interior se conjugam desta forma, só posso chegar a esta conclusão banal: está tudo bem e certo da forma como está. Percorro o meu dia, encontrando um significado em tudo.
Dia 13 – Arrifana – Carrapateira (25 km)
Quando se encontra uma paixão não há nada que nos pareça mais natural do que fazer exatamente isso por que “arde” essa paixão. Quando se a tem por alguma coisa, ela requer sofrimento (no sentido de que há um empenho temporal e concentrado nessa coisa), e para isso cria-se algo. Acredito que o ser humano quer sentir que a vida faça sentido. Acredito que ele o consegue quando cria algo onde encontre um sentido, ou seja, aquilo por que nutre paixão. Uma das minhas paixões é o movimento. Seja praticado diariamente pela Natureza ou sobre mais ou menos um metro quadrado da esteira de yoga. Penso que vale a pena praticar os movimentos que mexem connosco, lá bem no fundo, no nosso interior. Para mim a vida é movimento. Mesmo quando aparentamos estar parados, o corpo está em movimento. Movimentarmo-nos faz parte de nós. E também penso que faz parte de nós, não só o nosso próprio movimento, mas também dar movimento, pôr algo a mexer na vida. Movimentar-me de forma consciente, durante quilómetros ou sobre um metro quadrado, ajuda-me a criar um elo com aquilo que, para mim, é real e realmente importante. O movimento permite ao meu corpo ser saudável e criar um foco para o meu espírito sempre caminhante. Quando me movimento, experiencio calma, centro-me em mim, em genuinidade, sinceridade, naturalidade e clareza. O que ganhamos para nós próprios, podemos distribuir pelo mundo. E assim, cá estou eu a caminhar, movimentando-me pelos campos de esteva, e deixo correr livremente os pensamentos sobre como posso transmitir ao mundo a minha paixão pelo movimento, à qual me dedico com prazer.
Dia 14 – Carrapateira – Vila do Bispo (18 km)
Um amarelo brilhante e luminoso espalha-se por todas as colinas. Os raios do Sol da aurora e o azul do céu… isto é… eu acho que se diz… perfeito. A imagem é completa. Como se toda a Natureza se estivesse a dedicar a ser perfeita. Fico emocionada com esta perfeição e adapto o meu passo à contemplação, como se estivesse a passar um templo sagrado. Quantas são as vezes que o Homem pensa que algo não está bem. Que o próprio, outro ou algo é insuficiente. A Natureza não conhece isto. Nela, tudo tem o seu lugar. O seu lugar certo. Nem sequer nos passa pela cabeça pensar que aquele arbusto, a flor ou a montanha estariam melhores se estivessem mais à direita ou à esquerda. Todas as épocas do ano têm um aspeto diferente. Tudo se desenvolve no devido momento, no seu tempo, e tudo, não há dúvida, está perfeitamente certo…
Entretanto, já estou em Portugal há quatro semanas. Normalmente, gosto de ter mais tempo para conhecer algo novo. Todos os dias vejo aqui algo que ainda não tinha visto antes. Acho que também se chama a isso primavera, acho eu. Ando em ziguezague. É Páscoa. Não encontro ovos, mas sim novas flores coloridas. Isto faz-me lembrar algo…: poder ficar espantada com algo, poder admirar algo, reconhecer os milagres. Sim, isso diverte-me. E, assim, admiro a Natureza na sua força e expressão de alegria – sem medo. Como seria o mundo, se nós, os homens, nos sentíssemos suficientemente bons? Será que o podemos aprender naturalmente?
Dia 15 – Vila do Bispo – Cabo de São Vicente (17 km)
Estou um pouco excitada. Isso prende-se com o facto de ir hoje alcançar uma meta. Se eu, corriqueiramente, caminhasse segundo o lema: o que interessa é o caminho e não a meta, mesmo assim, hoje, chegaria a um ponto em que o caminho, segundo o mapa, acaba. Esse ponto é o Cabo de São Vicente, o ponto mais a Sudoeste da Europa. Aqui, portanto, não poderia continuar? Será assim? Quando cruzamos a meta, chegámos e já não há continuação? Cruzar uma meta soa bem, é como se se tivesse conseguido algo e se pudesse agora descansar para todo o sempre. Lembro aquela frase, qualquer coisa como: Antes de ficar iluminado cortava lenha e carregava água, agora, depois de iluminado, continuo a cortar lenha e a carregar água. Portanto, entre o antes e o depois, ainda temos o agora. E, no agora, provavelmente também se corta lenha e carrega água. Ou seja, eu cortava lenha e carregava água antes da minha caminhada, fi-lo durante a caminhada e faria a mesma coisa depois dela?
Alcançar algo significa, “seguir o seu caminho”, “chegar perto de algo”, “chegar longe”, ou também “prosseguir”. Nesse sentido, alcançar não é um estado de imobilidade. Alcançamos uma meta, e, depois, continuamos. Durante duas semanas não vi mais longe do que onde chegava o meu olhar – e foi isso que sempre alcancei. A vista límpida no Cabo dá-me alegria. E agora, já não há mais nada? Oh sim! Ainda podemos alcançar muito na vida – principalmente coisas que conseguimos ver por nós próprios, e que nos fazem seguir caminho. Eu tinha chegado – eu estive a caminho.
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