Terça-feira, dia 14 de Abril 2020
de Dina Adão
Estou em casa vai para quatro semanas. Talvez porque tenho dado uso invulgar aos objetos, eles começaram a entupir, a desligar, a partir-se. As mãos – fim maior do pensamento – têm sido as minhas grandes aliadas. Aprendi a ligar um dispositivo universal no meu autoclismo, a desentupir sifões de lava-loiça e de casa de banho e a isolar fugas de água do duche com silicone, mas ainda me faltam as buchas adequadas para estrear o berbequim do Ikea e solucionar a questão da prateleira da despensa, que decidiu misturar azeite e massas na sua aparatosa queda ao chão.
As loiças também têm sofrido o desgaste de uma vida rotineira. E apesar de eu pensar que nos tratamos por tu, elas abrem fuga para um divórcio irreversível. No caso dos copos, o assunto tem sido mais grave. Poucos escapam à minha falta de destreza. Por isso, quando decidi fazer a visita prévia aos meus pais, antecipandome à limitação de circulação imposta pelo Estado de Emergência, decidi subir ao sótão e desenterrar peças do enxoval, que nunca cheguei a usar. Caixas, muitas, ofereceram-me o vislumbre do meu mau gosto adolescente no que toca a serviços de mesa. Os copos, por seu lado, pouparam-me, adormecidos em papel de jornal – desde há muito o meu papel de embrulho favorito. Palpando-os, e adivinhando serem de vinho por apresentarem pé alto, resgatei dois exemplares, apenas. Não preciso de mais.
Revelam-se fortes, brilhantes e grandes. Nus, e com o papel de embrulho ao lado, ofereceram-me uma viagem ao passado. Estico o papel, alisando-o sobre a mesa e leio: Algarve123 – N.º 314 – 06/05/2004 – 12/05/2004. Em três segundos tenho 30 anos e estou perdidamente apaixonada.
Como um pequeno aspeto da economia familiar pode eclipsar-nos, trazer-nos aromas, imagens, palavras e até pessoas que amámos um dia e já não estão entre nós.
Parece cruel que o assunto da economia doméstica e familiar, tão intrinsecamente enraizado nas mãos da mulher a partir dos anos 40, tenha desmerecido presença nas estantes das Bibliotecas dos dias de hoje.
A minha mãe sempre me ensinou a fazer, com sabedoria e proveito, pastéis com o resto do peixe, envolto em ovo, batata cozida e salsa, ou a escolher os tecidos mais bonitos de roupas em fim de vida, para fazer estojos de lápis ou sacolas de pão. E é a esse saber que regresso agora. Repousam sobre a mesa quatro recortes – retrato perfeito do filme de youtube. Já não tenho a máquina de costura, é certo, mas uma vez mais, tenho as mãos como grandes aliadas. Seguindo com fidelidade a arte e o engenho, vou fazer hoje as nossas próprias máscaras a partir de um saco de compra de uma loja de sapatos.
Penso uma vez mais na originalidade que podemos imprimir aos objetos que nos rodeiam quando nos permitimos recriar a simplicidade. Não posso deixar de sentir um certo orgulho pelo património que trago dentro de mim – e que tento passar à minha filha, em pequenos gestos, pequenos gestos, capazes de fazer uma grande diferença.