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de Richard Zimler

Nº 106 – A desconcertante e assustadora ascensão do Chega
de Richard Zimler

Sábado, dia 25 de setembro de 2021.

Há cerca de três anos, uma jornalista portuguesa convidou-me para participar no seu programa de televisão Visita Guiada, no qual os espetadores são levados a conhecer locais de interesse histórico e cultural do país. Pretendia entrevistar-me no interior da Igreja de São Domingos, em Lisboa, por ter sido nesse local que se iniciou o pogrom antissemita de 1506, que descrevo no meu romance bestseller O último cabalista de Lisboa. Nesse pogrom, que durou três dias, cerca de 2000 cristãos-novos – que, nove anos antes desta data, tinham sido forçados a converter-se ao Cristianismo – foram assassinados e queimados no Rossio, a praça principal da cidade. Segundo relatos da altura, os padres da Paróquia de São Domingos incitaram a multidão cruel nas ruas de Lisboa, gritando: “Morte aos judeus!” e “Morte aos hereges!”.

Até à publicação do meu romance, em 1996, este crime contra a humanidade – geralmente referido como “O massacre de Lisboa de 1506” – tinha ficado quase completamente esquecido. Foi um crítico americano que referiu que O último cabalista de Lisboa forçou um país inteiro – Portugal – a reavaliar a sua história no que toca à presença judaica.

Aceitei o convite para participar no programa Visita Guiada para falar sobre a história dos Judeus em Portugal, mas duas semanas antes das filmagens, a jornalista que me havia convidado ligou para cancelar a entrevista. Por que motivo? A diocese de Lisboa não tinha autorizado a minha presença na Igreja de São Domingos para falar sobre o Massacre de Lisboa de 1506. Sim, 500 anos depois do pogrom antissemita, os responsáveis da igreja católica de Lisboa ainda conseguiam censurar a minha presença num programa de televisão. Pretendiam, sem dúvida, esconder a verdade sobre o envolvimento da igreja no massacre.

Recordo esta história porque o desenvolvimento, em Portugal, de uma democracia estável e progressiva nos últimos vinte anos tem tido tanto sucesso que fez com que muitos portugueses esquecessem que atitudes reacionárias como essas ainda são comuns cá no país: Os grupos ultraconservadores, de extrema-direita, e até grupos fanáticos, encontram-se bem organizados, e, em alguns casos, ainda têm bastantes poderes políticos e económicos. E esse grupo de pessoas, um pouco ingénuas – no qual eu próprio me incluo – por vezes também não compreendem que esses grupos, para atingir os seus objetivos, fazem tudo para esconder e distorcer a verdade.

Desde 2019 que um partido de extrema-direita de um ex-comentador desportivo pretende unir esses grupos dispersos com políticas xenófobas, racistas e nacionalistas. O nome desse partido é “Chega!”. A origem do nome pretende sublinhar que os representantes deste partido estão fartos da situação em Portugal e pretendem afastar-se das políticas sociais e económicas progressistas.

O Chega deu os primeiros passos com um culto à personalidade do seu fundador, André Ventura, e esse traço mantêm-se até hoje. Mas isso não tem impedido a sua ascensão. Ventura foi eleito deputado em 2019, o que deu muita visibilidade ao seu programa regressivo e radical e lhe possibilitou dirigir insultos aos membros do Governo e outras pessoas, que não concordam com ele. No mais recente teste à sua popularidade, as eleições presidenciais de janeiro de 2021, este líder da extrema-direita conseguiu 11,9 por cento dos votos. Na globalidade foram 496.773 os portugueses que votaram nele.

Grande parte das políticas de Ventura assentam numa retórica controversa para, assim, conseguir cliques na internet, e granjear de uma maior visibilidade e poder de marketing na televisão. Por exemplo, está constantemente a afirmar que o atual Governo socialista é altamente corrupto – sem apresentar quaisquer provas – e culpabiliza o Primeiro-Ministro, António Costa, e os seus apoiantes por todos os males existentes no país.

Tal como Donald Trump e outros líderes populistas, Ventura instrumentaliza a nostalgia dos eleitores de direita por um passado supostamente glorioso. Claro que isso implica que os seus apoiantes ignorem uma história que inclui episódios como a violenta colonização do Brasil e de África e o longo e lucrativo período de comércio de escravos. Também esquecem, igualmente, que Portugal esteve durante centenas de anos na cauda da Europa segundo todos os indicadores para o desenvolvimento da economia e da educação.

Mas existem muito mais exemplos do subdesenvolvimento de Portugal. Durante a ditadura de direita de Salazar, que vingou desde início dos anos 30 a 1974, as mulheres não estavam autorizadas a ter conta bancária ou a viajar para fora do país com os seus filhos sem uma autorização por escrito dos seus maridos. A polícia secreta – PIDE – prendia dissidentes e torturava-os em prisões que só a própria controlava. A pobreza era tão severa – e a repressão tão violenta – que se estima que um milhão de portugueses tenham emigrado para França e outros países europeus nos anos 60. Os analfabetos, estima-se terem representado 35 por cento da população e apenas 4 por cento dos estudantes conseguiam um curso superior. Resumindo, Portugal era um país em que grande parte da população não podia ambicionar conseguir um futuro melhor – ou mesmo sequer podia esperar poder um dia ser capaz de exercer liberdades fundamentais, como a liberdade de expressão.

É desconcertante para nós, que pensamos racionalmente, que os eleitores do Chega ou outras pessoas considerem essa era como uma era dourada e pretendam que tempos assim voltem a acontecer. É assustador.

Apresento aqui algumas das propostas de André Ventura:

No auge da primeira vaga da pandemia da Covid-19, em maio de 2020, apelou a que a comunidade cigana – 20.000 a 50.000 pessoas – fosse alojada em campos especiais, segregada do resto da população. (Sim, leu corretamente esta última frase; Ventura fez campanha para que os ciganos fossem aprisionados em campos de concentração). Assumia claramente que essa comunidade, que representa menos de 1% da população, era responsável pelo aumento das infeções com Covid-19 em Portugal, o que era, evidentemente, uma mentira crassa.

No programa do partido para as eleições legislativas de 2019, o Chega propõe a retirada dos fundos e o fim do sistema público de ensino e do sistema nacional de saúde. (Sim, leu corretamente; o Chega pretende fechar todas as escolas públicas e todos os centros de saúde e os hospitais públicos). Durante a pandemia, Ventura atacou repetidas vezes o Ministro da Saúde e outros altos funcionários do Sistema Nacional de Saúde, acusando-os de gerirem mal a crise da pandemia. Mas a realidade diametralmente inversa; depois de um arranque lento, como em todos os estados-membros da UE, Portugal geriu a crise pandémica com admirável eficácia. Neste momento, apenas dois países (Malta e Islândia) se encontram percentualmente acima do Sistema Nacional de Saúde no que se refere ao número de cidadãos vacinados. Os líderes do Chega recusam-se a aceitar esse sucesso e criticam insistentemente as diretrizes do Governo, inclusive a obrigação do uso de máscaras e o distanciamento social. Os seus eleitores, pelos vistos, não compreendem que sem um Sistema Nacional de Saúde forte e um bom planeamento centralizado, a Covid-19 teria afetado gravemente a população, tal como aconteceu em países com sistemas nacionais de saúde ineficientes e políticas locais diferenciadas (veja-se o caso dos EUA).

Nesse mesmo programa eleitoral de 2019, o Chega reclama a proibição de interrupções voluntárias da gravidez em hospitais públicos e clínicas.

Na convenção do partido, em 2020, um dos militantes apresentou a proposta de se retirar os ovários às mulheres que fizessem uma interrupção voluntária da gravidez. Embora a proposta tenha acabado por ser rejeitada, 38 representantes do partido votaram a favor da mesma. Ou seja, 38 membros votaram a favor da detenção de mulheres que tenham interrompido uma gravidez, para sujeitá-las à remoção cirúrgica forçada dos seus ovários.

O Chega, tal como os seus congéneres populistas de direita, Trump e Bolsonaro, também se empenha na divulgação de teorias da conspiração absurdas. Por exemplo, quando Ventura testou positivo à Covid-19, no verão de 2021, membros do partido da cidade de Vila Real postaram no Facebook a notícia de que os profissionais de saúde dos centros de vacinação estavam a tentar envenenar o seu líder e outros membros do Chega.

As propostas e publicações nos “social media” de Ventura e seus seguidores tornam bem claro aos potenciais eleitores que eles não se afastarão de ideias que provam ser contraproducentes e perigosas (acabar com o Sistema Nacional de Saúde) ou até ditatoriais e imorais (colocar ciganos em campos de concentração e a retirada forçada de ovários às mulheres) e continuam a espalhar falsas notícias para dar mais visibilidade ao seu líder (alegando que os centros de vacinação o tentaram envenenar). Está, portanto, a imitar as táticas de outros líderes de extrema-direita, como Marine Le Pen, e pediu o apoio desses líderes por diversas vezes. Por exemplo, Ventura convidou Le Pen para falar num comício do Chega, em janeiro de 2021. Nessa ocasião, esta classificou-o como “um grande líder político europeu” e, juntos, criticaram a imigração para a Europa de pessoas vindas de países subdesenvolvidos.

Quem, para além de Ventura, está na liderança do Chega?

Um exemplo típico é Hugo Ernano, antigo membro da GNR, condenado em 2008 por assassinar um rapaz cigano de 13 anos de idade durante uma perseguição de carro. Ernano foi condenado a nove anos de prisão e a pagar 80.000 euros à família do jovem. Apesar disso, é o principal candidato do Chega na cidade do Porto nas legislativas de 2019, mostrando que o assassino de uma criança é o tipo de candidato que o Chega pretende para atrair eleitores e membros ao partido.

Não podemos simplesmente ignorar este tipo de candidatos – e todo o movimento do Chega – só por ser radical e perigoso demais para chegar realmente ao poder, porque, com a obtenção de 11,9 por cento dos votos nas últimas presidenciais, Ventura mostrou que propostas racistas, misóginas e ditatoriais são apelativas para uma minoria da população, e que o seu partido pode vir a ser uma das forças a influenciar as políticas de governação. Um perigoso precedente aconteceu em novembro de 2020, quando o segundo partido político do país, o Partido Social-Democrata (PSD), formou uma coligação com o Chega para governar a região autónoma dos Açores. Desta forma, o PSD e o seu líder, Rui Rio, que já foi presidente da Câmara do Porto, legitimaram as propostas imorais e as táticas populistas do Chega.

É também preocupante como o Chega conseguiu, por vezes, desviar a atenção dos media em Portugal das questões importantes, tais como as alterações climáticas, o fosso entre ricos e pobres e a necessidade de reforçar o sistema educativo em Portugal. Tem-se empenhado, igualmente, a espalhar incertezas na mente das pessoas sobre se medidas como o uso de máscaras, distanciamento social e vacinação são necessárias para combater a pandemia de Covid-19. Ao fazê-lo, Ventura e os seus amigos ajudaram a criar uma atmosfera política em que a verdade e o essencial são cada vez mais irrelevantes. Interessa-lhes chamar a atenção dos eleitores através da divulgação de notícias falsas, mentiras e propostas controversas.

Ninguém sabe qual a popularidade que o Chega poderá vir a conseguir nos próximos anos. Afinal, também não foi previsível o sucesso de Donald Trump há seis ou sete anos atrás. E o apoio logístico e financeiro de Marine Le Pen e outros aliados de direita podem fazer com que haja uma polarização, em Portugal, semelhante à que se vive no Brasil e nos EUA. Ou, o que ainda seria mais grave, os governos podem vir a destruir as políticas progressistas que possibilitaram gerações de jovens bem formados e tiraram o país da pobreza extrema, proporcionando mais igualdade, saúde e justiça social.

 

Richard Zimler

é um escritor cuja obra se encontra traduzida em 23 idiomas. Divide o seu tempo entre as cidades de Lisboa e do Porto. Os seus mais recentes livros são The Gospel According to Lazarus, em inglês, e Insubmissos, em português. Consulte também o seu website: www.zimler.com

Fotos: dpa, Lara Jacinto

Tradução: Stefanie Kreutzer, Rudolfo Martins

Richard Zimler

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