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Como se liberta?

Quando chega o momento de viragem nas nossas vidas

Kathi Heusel, austríaca e consultora holística, e Bart Delember, belga e professor de kite-surf, ambos com idades entre os 30 e os 40 anos, vivem na costa alentejana. Certo dia, perante a enorme quantidade de resíduos plásticos no mar e no seu dia-a-dia decidiram dizer basta e decidiram tomar outro rumo nas suas vidas. Considerando inaceitável a quantidade de lixo, sobretudo plástico, que se encontra a flutuar nos oceanos, decidiram empenhar-se numa nova forma de viver. A maior parte das pessoas devem pensar o mesmo, diz Kathi Heusel, em conversa com a ECO123. Mas o que pode uma só pessoa fazer se o resto do mundo continua a comprar e usar este produto, mantendo o terrível circulo vicioso do plástico e do petróleo? Ambos pensaram poder fazer algo mais construtivo e tornaram-se parte da solução. Começaram por mudar o seu estilo de vida: a evitar a compra de produtos embrulhados em plástico; a substituir o plástico por materiais mais naturais e sustentáveis, como o vidro, a madeira, o linho e o algodão; a usar somente materiais reutilizáveis e a consumir produtos biológicos.

Taylor Leigh Cannizzaro,
Taylor Leigh Cannizzaro,

A sua vida tornou-se mais consciente, com menor pegada de CO2. Começaram a comprar os alimentos a produtores locais e regionais e a não depender das principais redes de fornecimento. No entanto, estavam convencidos de que poderiam fazer ainda mais. Foi ai que Kathi teve uma ideia. Com o seu amigo Bart ponderou a possibilidade de organizar um evento online sobre a redução das emissões de CO2 que ajudaria a espalhar o conhecimento e as informações sobre como travar a morte animais marinhos com os resíduos plásticos. Quais são as soluções? Como podemos encontrá-las? E o que pode realmente ser concretizado? O resultado foi um “summit” online, chamado “A solução para os resíduos plásticos – primeiro summit internacional para um mundo livre de plástico”, que teve lugar no início de junho. A ECO123 visitou Kathi Heusel em Pedralva, perto de Vila do Bispo, e conversou com ela sobre o que a motivou a organizar este evento que, de um momento para o outro, teve mais de 10.000 seguidores. O seu objetivo é conseguir que cada vez mais pessoas ganhem consciência do lixo plástico que circula nos nossos oceanos e no meio ambiente em geral.

A ECO123 publica uma entrevista especial do “summit”, no qual Kathi Heusel e Bart Delember falaram com Taylor Leigh Cannizzaro, assessor de imprensa do Plastic Bank.

Que ideia tão fantástica e tão necessária: conte-nos mais sobre o que faz o Plastic Bank. Quando foi fundado? Qual a sua missão? Conte-nos tudo.
Tudo ao mesmo tempo? Bem, a fundação deu-se em 2013 e tornámo-nos rapidamente na maior rede de lojas para os mais pobres. Porque a verdadeira origem da poluição reside na pobreza, certo? Este é um local onde tudo pode ser comprado e transacionado por lixo plástico. A ideia original partiu de David Katz quando este visitou uma universidade e se sentiu inspirado pelo facto de um pedaço de plástico poder ser transformado em algo completamente diferente, resultando daí um valor sete ou dez vezes maior que o valor original. Foi aí que pensou: “E se o problema não for o plástico; e se o problema formos nós e a forma como o armazenamos enquanto material? E se podermos, a partir desse contexto, mostrar às pessoas o valor acrescentado que o plástico representa enquanto lixo?” Foi assim que nasceu o Plastic Bank. Estamos nas regiões onde impera a pobreza extrema e aliciamos as pessoas a trazer-nos o seu lixo. Depois, pagamos um certo valor por quilo, o que muitas vezes duplica ou triplica os seus rendimentos. O nosso objetivo é impedir que o plástico chegue aos oceanos e aliviar a pobreza, trazendo milhões de pessoas à participação neste processo.

Unir as pessoas, é isso que é preciso fazer. Já nos disse que tudo começa com todos a juntar o plástico, mas este é só o primeiro passo. Qual é o passo seguinte? As pessoas vão ao Plastic Bank, recebem algo e a partir daí há muito mais a acontecer, certo?
Sem dúvida. (risos) Estamos a agir em prol do desenvolvimento económico. Estamos a dar uma oportunidade que as pessoas, de outra forma, não teriam. Quando entregam o lixo podem receber dinheiro ou um voucher digital. Temos um blockchain pela IBM que pode depois ser trocado por pagamentos por ensino escolar, segurança social, acesso à internet, eletricidade, minutos de chamadas (telemóvel), combustível para cozinhar ou fornos solares. Depois, ficamos com o plástico e processamo-lo à nossa maneira, reciclando ou preparando o material no mesmo país, para que o valor acrescentado fique lá. Para estimular a economia local. O nosso objetivo é produzir algo que se chama social plastic, plástico social.

O que é isso?
Plástico social é um novo tipo de plástico. Não é virgem nem é reciclado: é plástico social. Vendemo-lo aos nossos clientes, principalmente à SC Johnson. Estão em vias de lançar uma garrafa de Windez toda ela feita de plástico social. E também a Henkel está a usar este produto nos detergentes, nos produtos de beleza e para o lar. Estamos mesmo entusiasmados com o apoio das grandes multinacionais que estão agora a dar um grande impulso à economia circular do plástico. Esta é uma nova forma de gerir os materiais.

Há grandes empresas que já estão a participar?
Sim. E mais se juntarão. Isto é muito interessante. David Katz tem promovido isto durante tantos anos e agora parecemos estar mesmo na mó de cima. Pelos vistos somos os únicos com sucesso nesta área e todos vêm ter connosco. Portanto é fantástico. Estamos no lugar certo.

Já nos disse o que as pessoas podem obter por entregarem o seu plástico. É uma oferta bem vasta. E essa oferta cobre as suas necessidades básicas?Todos os anos são produzidos 300 milhões de toneladas de plástico e, provavelmente, oito milhões de toneladas são levadas até ao oceano, somando-se aos 100 milhões de toneladas que já lá estão. Temos que desenvolver a infraestrutura necessária para a gestão do material a reciclar. Como conseguir entrar nesses ecossistemas, valorizando-os de forma a que, no final, se consiga retirar essas pessoas da pobreza, fazendo com que pensem no meio ambiente? Neste momento não têm uma noção da poluição que o plástico provoca nem pensam no plástico que deitam fora e que acaba sendo levado para o mar pelas chuvas. Nem sequer sabem de onde virá a sua próxima refeição. Vivendo assim, nas franjas da sociedade, em grande insegurança, não lhes é possível ensinar a reciclar. Mas é possível mudar os comportamentos. Pode-se mudar a forma como se relacionam connosco, dizendo: “Ok, ouve, traz-nos esse plástico”. Num modelo social franchisado no Haiti, onde as famílias são motivadas a trazer o seu lixo plástico para a escola, podemos trocá-lo de imediato pelo pagamento das aulas ou dos uniformes escolares.

plasticbank

Mencionou o Haiti. Já tem planos para a implementação em mais alguns países?
É realmente aí que investimos mais tempo e energia: no Haiti, nas Filipinas, e, mais recentemente, na Indonésia e no Brasil. No entanto, há muitos mais países responsáveis pelo plástico que vai parar aos mares. E sim, também temos que nos debruçar com esta iniciativa sobre San Diego, em Nova Iorque, se pretendemos mesmo combater o problema da poluição dos plásticos. O nosso foco principal neste momento são os países em que o plástico vai diretamente para o oceano. Estamos a estudar alguns países como o Egipto e a Colômbia. Continuamos a expandir-nos enquanto os nossos parceiros vêm ter connosco e perguntam: “Ok, onde podemos ir a seguir?” Por exemplo, somos parceiros da Henkel no seu programa, chamado Shaping Futures, no qual oferecem a pessoas desfavorecidas formação em cabeleireiro. A parceria funciona segundo o lema: “Recicle para garantir uma nova carreira”. Através da colaboração no nosso processo de reciclagem podem agora vir a ser cabeleireiros e ter garantido um trabalho num salão. Também damos muito valor à formação de pessoas independentes. Muitos dos nossos participantes são mulheres.

Pode dar-nos um exemplo, por favor?
Lise Nasis, do Haiti, que David Katz apresentou em palco no seu TED Talk, ficou viúva depois do terramoto de 2010, mas agora consegue pagar a educação dos filhos, as mensalidades da escola e os uniformes. Ela tem uma conta bancária. A maior parte das pessoas nessa situação nem sequer tem uma conta bancária. Ou uma cédula de nascimento. Agora, pela primeira vez, sentem alguma segurança, principalmente aquelas mulheres cujos maridos gastam o dinheiro na bebida ou simplesmente ficam com tudo. Em vez de terem de esconder o dinheiro, estas mulheres sentem agora que o seu ganho está seguro numa conta bancária a que só elas têm acesso.

É comparável a ter diamantes caídos pela rua, sem bancos ou outros intermediários. É assim que vemos o plástico. Sem isso o plástico seria apenas lixo no meio ambiente, sem valor, certo? Estamos a criar uma infraestrutura e um sistema no qual o plástico é um valor, e onde não existirá desperdício, nem lixo pelas ruas. Estamos a mudar o contexto e a desenvolver uma verdadeira economia circular do plástico evitando que este vá parar ao oceano.

Somos a favor de uma taxa sobre o plástico novo. De facto, não se deveria produzir mais plástico. Já temos plástico suficiente no planeta. Há 8.3 mil bilhões de kg de plástico na Terra neste momento.

Nem consigo imaginar quantos zeros tem esse número …
Se todas as pessoas pesassem 62 kg, a quantidade de plástico na terra neste momento seria o equivalente a 130 bilhões de pessoas. Pense bem neste número durante alguns segundos. É uma loucura. Portanto, não produzam mais! Vamos usar o que temos cá de momento, dar-lhe um valor e devolver esse valor às pessoas.

UN commits to stop ocean plastic waste

Só entre sete a nove por cento do plástico é reciclado. As pessoas dizem que é muito difícil reciclar este produto porque está todo misturado. Está sujo, não está lavado, como proceder neste caso? Qual o ponto de vista do Plastic Bank?
Conseguimos algum material de altíssima qualidade porque os nossos colaboradores acompanham o processo, ou seja, também isto é uma questão de vontade e formação. Fazemos uma triagem do plástico por cor e por tipo. Retiramos as tampas, as anilhas e os rótulos, o que faz com que obtenhamos matéria-prima de alta qualidade. E isso é uma das razões pelas quais os nossos parceiros adoram trabalhar connosco. Algumas das maiores companhias de reciclagem trabalham connosco porque têm toda a infraestrutura. Eles têm as máquinas, os meios de produção, etc, mas não têm a recolha. É aí que entramos. Para nós é importante fornecer material de alta qualidade. Eles estão no hemisfério Norte: Europa, Canadá, EUA. Como podemos ser mais eficientes nestas cadeias de produção? O nosso programa engloba a criação de representantes que possam depois colaborar connosco.

A máxima do Plastic Bank é: se o lavatório da cozinha está entupido e a encher, qual a primeira coisa que faz? Ir buscar uma esfregona, um desentupidor ou uma esponja? Nenhum dos três, primeiro fecha-se a torneira. Portanto, antes de mais, fechem a torneira e só depois há que gerir a restante situação. Se fecharmos a torneira ao plástico novo também iremos fechar a torneira ao plástico nos oceanos. E depois podemos limpar o que por lá anda. Adoramos o Ocean Clean-up Project. Sinceramente louvamos que tenham sido os primeiros a tentar fazer a diferença. Mas na realidade estão a desafiar a natureza.

David Katz, carinhosamente, apelida as limpezas de praia de “projetos para a restauração de habitats”. As limpezas de praia são fantásticas e temos que lhes dar continuidade, envolvendo mais pessoas para depois resolver o problema pela raiz, acabando com a pobreza.

Mencionou a Henkel como sendo uma das empresas com que trabalham. Que empresas mais colaboram no projeto?
A SC Johnson. Na realidade, foram eles que começaram o projeto connosco no Bali. Fisk e toda a sua equipa. E, a não esquecer, a Marks & Spencer no Reino Unido. Ocean Bottle é um novo parceiro que se irá juntar a nós. Estamos a contribuir para o ecossistema no que toca à neutralidade do plástico, e também a usar uma parte do plástico social nas suas garrafas. Também temos connosco a Eat Natural no Reino Unido, e mais uma série de outros parceiros. ALDI NORD juntou-se a nós recentemente, e Trader Joe’s nos EUA, que pertence à ALDI SUD.

O que mais podem fazer os nossos leitores e quem adora o vosso projeto? O que podem fazer para contribuir e fazê-lo crescer?
De momento estamos a fazer a nossa programação, portanto o que devem fazer é visitar a nossa página web e inscrever-se. Estamos a desenvolver o nosso programa de voluntariado, e uma das minhas principais tarefas é desenvolver a nossa rede de representantes. Também se podem inscrever no nosso projeto para o plástico neutro. Ou seja, podem ser voluntários, representantes e também passarem a ser consumidores neutros de plástico. Não digo só “vamos falar sobre o nosso consumo de plástico”. Não, na realidade, enquanto ainda estivermos presos numa economia baseada no plástico, há atitudes que se podes tomar que têm impacto e marcam a diferença nos ecossistemas. Temos diferentes níveis de neutralidade no plástico. Poderá tornar-se neutro quanto ao plástico, passar a ser herói ou campeão dos oceanos. Aconselho muito a que participem. O projeto para os representantes será aberto ao público em geral e proporcionará uma ótima formação e oportunidade para vir a fazer a diferença junto da sua comunidade. Depois, poderá passar do impacto local para um impacto global, e há todo um sistema de gratificações a apoiar esta iniciativa.

O nosso “summit” chama-se “Uma solução para a poluição do plástico”, embora saibamos que não há uma só solução para esse problema. Acha que há um leque de soluções que podem finalmente transformar o mundo num lugar sem plástico descartável?
Neste momento em que está a ser depositado plástico e lixo nos oceanos a toda a hora, temos que agir depressa. O plástico continuará a existir para sempre. Portanto, como criar a infraestrutura necessária para a recolha mundial de todo o tipo de material? O design que o produtor faz do material e das garrafas é importante. A recolha dos plásticos e a criação de um sistema bottle-to-bottle em cada país, é importante. E temos que ter em conta também a pegada ecológica: transportar esses materiais pelo mundo também não é funcional. Trata-se de criar sistemas circulares lixo zero nos próprios países e no mundo inteiro.

Muito obrigado.

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