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Nº 65 – E se lhe pagassem para ficar…?

Sábado, 12 de Dezembro de 2020

Que tal prepararmos um pequeno ensaio de campo científico? Pensemos neste esquema experimental em teoria? Vamos assumir que ficamos dentro dos nossos quatro muros, ou na parcela de terreno que possuímos. Assim, movemo-nos o menos possível, não visitamos ninguém, não vamos à escola, nem à universidade ou para o emprego. A vida continua, mas de forma um pouco diferente. A Internet foi desligada. Não há Facebook, nem Instagram, nem WhatsApp. O ecrã da televisão está configurado para congelar a imagem. Tudo o que temos disponível é a linha fixa, para o caso de partirmos uma perna ou algo parecido.

Hoje é a nossa última oportunidade para nos deslocarmos a uma verdadeira loja e obter tudo o que precisamos para sobreviver nas próximas quatro semanas: sabonete, pasta de dentes e desodorizante, pão, queijo e vegetais, fruta e assim por diante. A lista de compras está em cima da mesa. Falta alguma coisa? Papel higiénico? A eletricidade e a água foram pagas. A experiência de campo poderia, de facto, começar agora.

Mas, espere um segundo, será que pensámos realmente em tudo? Não devíamos pensar sobre o que vamos fazer com o nosso tempo todos estes dias? Como é que continuamos a preparar-nos para esta aventura? Arranjamos um bom livro para cada semana e já estamos a visualizar na nossa mente todo o conforto da nossa casa. De agora em diante, somos nós a decidir se nos queremos levantar ou ficar na cama. Já não somos o trabalhador da empresa que se reporta a um supervisor. Estamos a assumir o controlo. Fazemos nós o café sem pressão, tomamos o nosso pequeno-almoço sem olhar para o relógio. Se alguma vez passou uma semana num retiro de um convento, com direito à sua própria cela e uma vista para a parede branca, já terá tido um vislumbre do que pode acontecer enquanto a clausura durar.

 

Às 4h30 da manhã ouvimos o ligeiro tilintar de sininhos. Vestimo-nos, deixamos a cela em direção à sacristia e passamos à nossa sessão de canto de hinos. Esta tem a duração de uma hora. Silenciamo-nos nos intervalos. Na próxima paragem do pequeno-almoço, um dos nossos irmãos do grupo de canto, que não sente esta experiência quotidiana da vida monástica como nós, uma vez que já há 30 anos que o mosteiro é a sua casa, dirige curtas orações matinais, lendo de um livro. Bebemos chá quente e comemos um pãozinho. Ou começamos o dia de forma um pouco diferente.

Aqueles que tiveram a sorte de ter passado uma semana na prisão, apenas para o experimentar, terão uma ideia do que vai acontecer de seguida. Os que não pretendem usar a roupa da prisão serão colocados numa única cela, trancada, e autorizados a sair uma vez por dia, por uma hora, para uma volta em torno do pátio da prisão. Na mesa encontrará um lápis e um bloco de notas com folhas de papel lisas. Uma vez por semana, terá direito a um duche coletivo.

Sejamos honestos, estamos meio curiosos, saltamos para qualquer sessão de filmagem, exibimo-nos em cada fotografia e informamos todos online o que estamos a fazer neste momento. Colocamo-nos, virtualmente, num recipiente do Big Brother algures na Austrália e participamos num espetáculo chamado Getmeoutofhere. Agora, aqui estamos hospedados no contentor durante quatro semanas, mostrando a faceta mais real e autêntica de nós mesmos. A isto chama-se autenticidade. Em vez de assistirmos à observação de um rato na gaiola por parte de um psicólogo, observamo-nos a agradar-nos a nós próprios.

Certo. Agora entramos na nossa gaiola, no oitavo andar do nosso arranha-céus, para experienciar a nossa vida familiar, com uma ou várias crianças, ou sozinhos, numa vida de solteiros, todos os dias, de manhã à noite, tudo isto durante 28 dias seguidos. Lavamos a casa de banho algumas vezes por dia, tomamos duches copiosos, alternando entre água quente e fria e começamos a nossa quarentena de bom humor. Afinal de contas, somos otimistas. No fim do dia alimentamos um diário, anotando o que fizemos durante todo o dia. Mesmo que não tenhamos feito nada realmente porque termos estado a pensar em nós próprios, registamos os nossos pensamentos, obrigados que nos sentimos na reflexão sobre algo que temos vindo a negligenciar há demasiado tempo.

E tudo isto se transforma numa história, uma história verdadeira, ou inventada. E depois, após a primeira semana ter passado, depois a segunda, e a terceira – chegamos ao núcleo mais profundo – começamos a pensar no nosso futuro. Podemos, claro, bater com a cabeça contra a parede branca para vermos melhor o sangue. Cada um é o criador da sua própria fortuna. O que vamos mudar para melhorar a nossa vida? O que vamos atirar borda fora? Estamos a desfrutar da paz e do sossego, mesmo do barulho dos vizinhos, que discutem em voz alta e não conseguem perceber quem realmente são. Rimo-nos de nós próprios. Estamos ansiosos pelo almoço, porque cozinhar mais uma vez significa fazer algo de bom para nós próprios. Até agora, Slow Food não era nada mais do que uma expressão na moda; agora, pela primeira vez, estamos a vivê-la. O que estamos a fazer com a nossa vida, com o nosso tempo, connosco mesmos? Imaginemos o que seria desligarmo-nos durante 28 dias. Os pensamentos são livres.

Uwe Heitkamp (60)

jornalista de televisão formado, autor de livros e botânico por hobby, pai de dois filhos adultos, conhece Portugal há 30 anos, fundador da ECO123.
Traduções: Dina Adão, John Elliot, Kathleen Becker, João Medronho

Fotos: dpa

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